segunda-feira, 22 de junho de 2009

A DESCOBERTA DA MADEIRA

Ponta de São Lourenço - Ilha da Madeira
O Arquipélago da Madeira é constituído pelas ilhas da Madeira e Porto Santo (habitadas) e grupos de ilhas Desertas e Selvagens (desabitadas). A Ilha da Madeira fica situada a cerca de 700 Km da costa africana e a 1.000 Km de Portugal continental.

As primeiras alusões à Madeira datam da antiguidade clássica, sendo feita referência a paradisíacas ilhas atlânticas. Posteriormente, o Arquipélago foi representado em mapas italianos e catalães do século XIV. No entanto, oficialmente a descoberta data do século XV.

A primeira a ser (re)descoberta, Porto Santo, foi avistada em 1419 (1418 segundo algumas versões), por João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira, depois de muitos dias à deriva pelo alto mar, afastados da sua rota pela costa de África devido ao mau tempo. No entanto, alguns historiadores defendem que estes foram enviados precisamente para colonizar as ilhas que já eram conhecidas dos tais mapas antigos.

A ilha da Madeira seria descoberta no ano seguinte. Reza a lenda que de Porto Santo se avistavam umas nuvens escuras que os marinheiros pensavam ser o inferno (o fumo das almas penadas a arder...) ou o sítio onde os barcos cairiam num abismo, borda fora do mundo!

Apesar destes temores, João Gonçalves Zarco embarcou com alguns homens num barco e foi andando, apesar do pânico da tripulação, até encontrar terra firme: a Ponta de S. Lourenço, à qual foi dado este nome por ser o mesmo do navio do capitão.
Abel Zeferino

domingo, 21 de junho de 2009

PONTE FUNCHAL - OEIRAS

Catedral do Funchal - Catedral de Oeiras


Assunto: Funchal Antigo e os mil encantos da Madeira
Para:
inocente@xyzw.com
Data: Sábado, 20 de Junho de 2009, 17:13


Querido Abel Zeferino


Meu nome é Joca Oeiras, cognome que adotei em função da cidade de Oeiras-Piauí- Brasil e não Oeiras- Portugal como você bem poderia pensar. Sou assessor de imprensa da Fundação Nogueira Tapety - FNT, entidade privada com escopo cultural e sem fins lucrativos que tem sede aqui em Oeiras-PI. Nosso patrono, Benedito Francisco Nogueira Tapety, de nome artístico Nogueira Tapety foi um grande poeta precocemente falecido, em 1918 aos 27 anos de idade, vítima da tuberculose. Foi esta doença que o levou ao Funchal em plena primeira guerra mundial, em 1915. Dessa estada no Funchal o poeta deixou registradas algumas anotações que nós chamamos "Diário da Madeira" (nome de um jornal homônimo existente na época, não sei se ainda existe). Com estes registros, fiz um blog para o qual me utilizei das sua belas fotos antigas, entre outras ilustrações variadas. Terei muito prazer se se dispuser a acessá-lo e, depois, me dizer o que achou dele. Devo confessar que, com a pesquisa iconográfica que fiz, acabei totalmente encantado pela Ilha e, por isso, gostaria de manter contato com pessoas, e, certamente, você é uma delas, que se disponham a conversar sobre a História e a própria vida social da Madeira. Espero que aceite o minha amistosa proposta.

beijos e abraços

do Joca oeiras, o anjo andarilho


AGUARDO RESPOSTA

De: Zeferino Inocente@xyzw.com

Assunto: Res:Funchal Antigo e os mil encantos da Madeira

Data: Sábado, 20 de Junho de 2009, 19:54
Sr. Joca Oeiras

É com muita satisfação que vejo alguém se interessar pela História da Madeira.
Já dei uma olhada no seu blog, mas apenas por 15 minutos e nao tive mais tempo, mas pesquisarei tudo assim que possivel.

Quanto ao Diário da Madeira, não tenho conhecimento desse nome. que eu saiba , em Madeira já havia, desde 1888 o chamado "Diário de Noticias", que ainda existe e pode o consultar neste sitio:
http://www.dnoticias.pt/

De momento não tenho mais tempo, mas voltarei a entrar em contacto consigo, após pesquisar outras informacões que tenho cá.

Abraço Abel Zeferino

domingo, 14 de junho de 2009

SETEMBRO, 15 (1915)

Hotel Reid Palace na Ilha da Madeira

Cheguei ontem pelas 9 horas da noite. Não pude, portanto, gozar do “Araguaia” o panorama da cidade à luz do sol, como esperava. Mesmo, porém, à luz elétrica, o espetáculo é magnífico pela quantidade de luzes e pela extensão em que elas se espalham como num anfiteatro, galgando em alas uma elevação que na bruma da noite pude distinguir, concluí logo que Funchal não era a pequena cidade que imaginei... Hoje verifico, num guia da cidade que comprei, editado em 1910, que a sua população já neste tempo era calculada em 3.000 habitantes. Talvez fosse um efeito da predisposição que eu vinha para achar Madeira muito linda, mas a verdade é que, mesmo à noite, fiquei encantado com a iluminação da cidade que, apesar de feérica, dá-lhe um aspecto bizarro pela natural topografia do terreno, cheio de anfractuosidades. Foi esta a impressão que em mim produziu o primeiro golpe de vista com que olhandodo “Araguaia” e na bruma da noite eu vi a ilha da Madeira.
Uma observação que fiz, mesmo a bordo, foi a do sotaque indigno com que se fala o português. Todos falam cantando e cantando sensivelmente. No Brasil consigna-se este fato entre alguns habitantes do norte; aqui, porém, a coisa é muitíssimo mais exagerada. Ri, intimamente, desta primeira diferença entre o brasileiro e o ilhéu português.
A bordo apareceu um Senhor Souza, empregado do Reid’s Hotel, onde o AntônioVeras aconselhou que me hospedasse. Com este senhor desembarquei numa lancha do hotel, depois de haver entregue a bagagem ao catraieiro indicado por ele. Chegados ao cais, informa o Sousa que o hotel é um pouco distante e seria melhor ir em automóvel.Veio o auto e quando chegamos ao Reid’s fiquei surpreendido: custava 500 réis o transporte que eu no Brasil talvez só fizesse por 5.000 réis. Aí apareceu-me uma senhora que indicou ao Souza o quarto nº 1. E foi neste quarto nº 1 da Vila Vitória (anexo do Reid’s Pálace Hotel) que dormi a primeira noite na Madeira.
Acordei, seriam 8 horas. Abro a janela e um jorro de luz invade o quarto. O panorama que descortino é soberbo: à direita o mar muito calmo e muito verde, à esquerda o monte coroado de névoa e coberto de verdura, para frente quintas e chalés interessantes e pitorescos e lá mais abaixo a cidade com seus telheiros avermelhados de concreto. Faço a “toillete” e desço. Peço o jornal e dão-me o “Diário da Madeira”. É um jornal grande, mas que me parece mal feito. Na sala de jantar um criado solenemente encasacado indica-me uma pequena mesa. Sento-me e sou servido de peixe, ovos, leite, chá, pão e frutas. A esta primeira refeição chama-se aqui almoço. Vejo num anúncio contido num artístico folheto que o Souza me deu, ser a seguinte a ordem das refeições neste luxuoso hotel, onde não me estou sentindo muito bem, por me achar completamente deslocado e fora dos meus hábitos: às 9 horas almoço; à 1 lanche; às 4 chá, às 7½ jantar. Além do mais verifico logo que tudo aqui é inglês e à inglesa desde o dono do hotel aos hóspedes; desde a ordem e horário das refeições aos pratos que vêm à mesa. Depois de ter eu almoçado chega o Souza (é um empregado que não assiste no hotel: vai a bordo, recebe os passageiros, acomoda-se e vai-se, voltando apenas quando é preciso ou quando traz novos hóspedes vindos em vapores que chegam). Saímos juntos e, como eu lhe havia dito ontem à noite que me destinava ao hotel Reid’s, porém o do monte (este Senhor Reid tem aqui nada menos de três hotéis: Reid’s Pálace Hotel, Reid’s Carmo Hotel e Reid’s Mount Park Hotel; é sócio de um banco e tem casa de modas e bordados... o diabo enfim), resolvemos ir à alfândega despachar a bagagem de lá para o Reid’s Mount Park Hotel, e eu subo, depois de ter lanchado no trem das três horas. Na alfândega fomos despachados logo e quando o Souza entregava bagagem a um catraieiro para levá- la ao Monte, aproxima-se um guarda e diz que eu tinha de pagar “capatazia” ou cousa que o valha. Tomei um choque. Supus que me fossem esfolar e pergunto ao homem quando é: “duzentos e cinqüenta réis”, responde-me ele com uma arrogância feroz. “Tableau”!
Sempre acompanhado do Souza volto ao hotel. Tomo o lanche, que acho esplêndido e voltamos os dois à cidade onde, depois de passar telegramas para o Piauí, dizendo ter chegado com boa viagem, e de ter comprado livros (6 volumes por 2.400 e ótimos livros) tomo o comboio para o Monte. À proporção que o comboio subia também a minha admiração pela Madeira. Que beleza de paisagem! Chegados à estação não encontrei o Sr. Fernando, como esperava, pois o Souza me disse ter prevenido pelo telefone a este Sr. Fernando (diretor ou gerente de Reid’s Park Hotel) que me fosse receber à estação no que ele concordou. Falo a uns carregadores que levem a mim e a bagagem (que foi no mesmo comboio) para o tal hotel, e lá íamos quando encontramos o Sr. Fernando que me vinha prevenir não existirem cômodos vagos. Que sentia muito, mas que isto mesmo dissera ao Souza e fora ele Souza então quem não ouviu bem. Desapontado, furioso, desci no mesmo comboio, e se nesta ocasião encontro o imbecil que me fez dar tamanha viagem perdida, esganava-o, sem dúvida. Na volta sentou-se ao meu lado uma linda criatura que pelo tipo me pareceu inglesa. Quando calçava as luvas, a sombrinha, que ela encostara aos joelhos, caiu sobre os mes pés, e, como a tinha juntado e entregado cortesmente sua formosa dona, esta pagou-me com um lindo sorriso a amabilidade que lhe fiz. Durante a viagem olhou-me sempre com interesse, do que concluí que ou essa criatura estava admirada do meu tipo de mulato, que não é muito comum aqui, ou é alguma “demi-mondaine” que “faz olho” por dever de ofício. Chegado à estação o guarda que despachara minha bagagem para o monte perguntou porque havia voltado. Expliquei- lhe tudo e explodi contra o Souza e contra as coisas de Portugal. O homenzinho mostrou-se sentido que eu tivesse me incomodado sem proveito. Ofereceu-me cadeira, prontificou-se a arranjar carro para mim e para a bagagem; enfim foi extremamente amável. Perguntou se eu voltava para o Reid’s Pálace, respondi que sim. Foi ao telefone pediu um carro que dentro de dez minutos chegou à gare. Por tudo isso gratifiquei-o com 300 réis. Os circunstantes, que nada tinham perdido a minha conversação ficaram estupefatos e eu compreendi, pelos olhares admirativos que me lançaram, que havia feito uma extravagância. Às 5 horas dava eu entrada no Reid’s Pálace Hotel pela segunda vez em menos de 24 horas. Procurei o Souza, já não estava. Não jantei bem e vou para a cama sentindo o fígado bem pesado.

SETEMBRO,16 (1915)

Carro de Bois utilizado para transporte de passageiros no Funchal
Dormi mal, não só porque o fígado incomodou-me durante toda a noite, como porque fui acometido de uma insônia terrível. Às oito horas desço para o almoço. Na ponte monumental que fica muito perto daqui (talvez uns 80 a 100 metros) há uma aglomeração. Foi um Sr. Diogo Sorsefield que se suicidou, atirando-se abaixo. A ponte tem 31 metros de altura, de modo que quando o homem acabou de cair era cadáver. O Sr. Diogo era tesoureiro da Junta Geral e dizem que há dias apresentava sintomas de alucinação mental. Tomo o meu almoço e faço, pela primeira vez, um grande passeio aos magníficos jardins deste Reid’s Pálace Hotel, que cada vez me parece mais suntuoso. Fiquei pasmo e admirado como um estabelecimento particular sustenta um jornal como este, monstruoso, maravilhoso, onde vejo plantas, flores e árvores frutíferas de todos os climas. O hotel propriamente (é preciso ter em vista que estou hospedado na Vila Vitória, um simples anexo, uma simples dependência do Reid’s Pálace, o qual só se abre para o “saison”, que vai de novembro a junho – tempo em que há veranistas e turistas de toda Europa) é um palácio esplêndido com elevadores elétricos e todos os confortos que a civilização tem criado e comporta 250 hóspedes com os anexos. Fica eminente à rocha denominada “Salto do Cavalo”, que tem 150 pés de altura, e ao oeste do jardim, que é comum também à Vila Vitória. Imagine-se sobre estes 150 pés um palácio de seis andares, com um ótimo e amplo terraço no segundo andar, donde se domina o Atlântico e se aprecia, portanto, todo o movimento do porto de Funchal. Depois de ter visto o hotel propriamente, volto pelo jardim vendo detalhadamente tudo. Pergunto a um jardineiro que trabalha o nome de uma planta que havia num canteiro com uma variedade excepcional na mesma espécie. Pois não conhece? É a malva.

Pois bem. Existe aqui malva com flores em todas as cores: há as vermelhas, absurdamente vermelhas, há brancas, levemente rosadas, amarelas, enfim, uma variedade que surpreende. Há parreiras constituindo caramanchões de uma extensão fantástica; rosas, trepadeiras de muitas espécies e flores bizarras e estranhas como a estreleta, a tebaíba (rainha das flores), uma linda e grande flor branca, as lílias. Aqui conheço a verdadeira açucena, o cáctus, a magnólia legítima etc. No pomar encontro desde a bananeira até a cerejeira. Tamareiras há em todo o jardim cheias de cachos grandes admiravelmente; vejo não sei quantas espécies de palmeiras; pessegueiros, ameixeiras, macieiras e até mangueiras que, por sinal, estão carregadas de frutos e não tem mais de três metros de altura as que puderam crescer mais. Acho-as interessantíssimas comparadas com as do Brasil.

Desço ao mar pela escada do cais do hotel; examino as cabines de banho (salgado) e daí aprecio a altura da rocha em cima da qual edificaram o Reid’s: é simplesmente dantesco este conjunto e por mais que eu escreva não traduzo, não exprimo. Basta dizer que para chegar ao mar (à praia de banho ou cais do hotel) tive que descer 243 degraus. Desta rocha de 150 pés de altura, disse-me um criado, foi que se precipitou o Senhor Rebouças, um brasileiro que se exilou quando de lá foi deportado o Imperador (isto que para mim é um fato ignorado, confesso-o, fica registrado aqui por conta do criado). Quase a uma da tarde volto para a Vila Vitória, fatigado de ver tanta cousa nova para mim e tudo isto sem ter saído do Reid’s Pálace Hotel.

Tomo o lanche à 1 hora; desço novamente ao jardim e à sombra das tamareiras que formam um pequeno e delicioso bosque começo a compor os primeiros versos da Janua Coeli.

Às quatro horas volto para o chá. É a única refeição que temos em sociedade, isto é, de que nos servimos em uma só mesa. Na sala de visitas e na mesa de centro, que é bem ampla, está uma enorme bandeja com uma alvíssima toalha e um rico serviço de prata, cada peça do qual é de um tamanho exorbitante. Há um enorme bule de chá, um açucareiro, uma leiteira, um bule de água quente, uma terrina (também de prata), com bolos ingleses e duas bandejas cheias de fatias de duas espécies. Ao redor da mesa estão dispostas algumas cadeiras. Poucos hóspedes servem-se destas. A maior ia enche a chávena e vai dispersando à vontade: um toma o sofá, outro uma cadeira de espaldar, este senta-se à cadeira do piano, aquele à da secretaria, aquele outro uma“chaise-longue” e todos, numa prosa animada, tomam chá. Eu observo e não digo, nem percebo nada. Todos são ingleses e falam a sua língua. Há, porém, uma inglesita magrela e feia que a tudo o que lhe falam sibila um “yes” que já me vai irr itando. Parece que esta criatura só sabe de inglês esta palavra e, se houvesse com quem comunicar, propunha para ele o apelido de “Miss
Yes”. Deixo a sala e começo a leitura da “Parme Chautreuse”(sic)*, de Stendahl. Às sete horas, quando tocou o primeiro aviso de jantar, tinha devorado dois capítulos. Subi para fazer a“toillete” de jantar (todos os hóspedes aqui só dançam de “smoking”). Jantei pouco, porque o fígado continua mal. Próximos a mim numa mesa redonda sentam-se três criaturas que começo a observar com interesse: um senhor que aparenta ter cerca de cinqüenta anos, uma senhora mais ou menos da mesma idade e uma rapariga que, no máximo terá 25 anos. As duas senhoras se entendem em espanhol. O homem só fala espanhol quando se dirige à rapar iga, que é sua filha, porque esta não sabe inglês; para todas as outras pessoas nada diz, senão neste idioma.

Depois do jantar dirige-se a mim um hóspede velhusco, de cara jovial, e pergunta em inglês qualquer cousa que não percebo. “I no espeech inglish”, digo-lhe eu. Fala-me então francês e pergunta se sou português. Digo-lhe a minha nacionalidade e entabulamos conversa sobre cousas do Brasil. Ele fala o francês perfeitamente mal, de modo que sinto-me à vontade assassinando a língua alheia. Apesar, nos entendemos bem. Depois de ter ido ele embora, pergunto ao João (nome do primeiro criado) e sou informado de que é um of icial reformado do exército inglês, que viaja para esquecer a dor que lhe deixou a perda de dois filhos mortos em combate com os alemães. Esteve quase a ficar maluco e demora poucos dias na Madeira, devendo embarcar no primeiro vapor para a Colônia do Cabo. Lembro-me de que ainda não vi oSouza para desabafar a propósito da viagem perdida que ele me fez dar ao Monte. Pergunto aos criados e dizem que ele hoje não apareceu. Subo para os meus aposentos e vou dormir depois de ter escrito estas notas, sentindo o fígado sempre pesado e dolorido.

* O poeta quis referir-se ao romance "
La Chartreuse de Parma"



SETEMBRO, 17 (1915)

Médico visitando pacientes no Funchal
Oito horas. Lindo dia de sol claro como o norte do Brasil. Vejo o jornal: notícias da guerra que não adiantam nada; ótimo e alvissareiro artigo sobre a paz; notícias do suicídio de ontem e diz que o homem deixa mulher e filhos. Almoço e continuo a leitura do “Parme Chartreuse” * que vou achando maçante, mas não atrevo a abandonar, porque traz no alto o nome Stendahl. Depois do lanche vou para o jardim. Sento-me num banco quando me surge do bangalô, que fica próximo, uma vivaz e atrabiliária criança. Dirige-se a mim e eu faço-lhe agrados. Deixo-a virar bolsos à vontade, quebrar a ponta do lápis, esfolhar o livro que trago etc.

Tudo isto, porém, calado, sem responder às perguntas que ele me faz, simplesmente porque não entendo (a criança é inglesa). Ele, já aborrecido, volta-se para mim e exclama: “You no espeech”!? Nisto surge uma senhora do mesmo bangalô, que me fala sempre em inglês e digo lhe: “I no speech inglish”. Ela procura retirar a criança e pede desculpas. Digo-lhe que não me causa incômodo, que gosto de crianças, que pode deixar o pequeno. Ela compreendeu, porque retirou-se balbuciando um “thank you”. Depois de ter aturado muito tempo a impossível criança, que sei agora chamar-se Douglas, por me ter dito uma criada que passava, deixei-a e subi para a rocha a cuja borda está construído o Reid’s. Lá abaixo estão umas inglesas tomando banho. Fico um tempo vendo-as nadar e volto à casa. Aí encontro o Souza que pede mil desculpas e procura justificar-se por todos meios. Digo que não houve nada e, para mostrar que não me zanguei, senão no momento, gratifico-o com 2$ pelas viagens que deu comigo auxiliando-me a fazer compras etc. etc... Janto bem e apesar de ter achado esquisitas estas comidas inglesas, já me vou habituando e começo a achá-las deliciosas. Depois do jantar, há um hóspede bisonho que vai ao piano e executa uma porção de lindas músicas entre os quais a“Soir d’Eté” de Fourdram, “Chant du Printemps” e outras belas músicas de Mendelssohn. O músico é irmão da inglesita do “yes”. Depois foi meu camarada.

* O poeta quis referir-se ao romance "
La Chartreuse de Parma"

SETEMBRO, 18 (1915)

Nos jardins do Hotel Belmonte

Dia banal e desinteressante foi este nas suas primeiras horas. Depois do almoço animou-se mais. O Souza traz novos ingleses que tomam cômodos. Há uma bonita senhora trintona e com ares de gente fina; um casal de burgueses (ao que me parece) balofos e um“dandy” que está de vez em quando a consertar o monóculo que traz entalado no olho direito.
Desço ao jardim e depois de um grande passeio volto, tomo um banho e o lanche. Retorno ao jardim, aprecio o banho das inglesas e, à hora do chá, chego à Vila Vitór ia. O tal senhor do casal burguês, que eu chamei balofo, sorri-me amavelmente e trava conversa em português legítimo.Já me parece simpático e descubro nele qualquer cousa de gente fina. A senhora é também muito atenciosa e amável. O jantar foi mais alegre. Converso com esta família sobre cousas brasileiras e troco também algumas palavras em francês com o músico de ontem que fala regularmente esta língua. Depois do jantar vou ao terraço e vejo uma paisagem assombrosamente linda. A lua e seu simples reflexo no mar calmo da enseada do Funchal produz um quadro tão soberanamente belo que só Rembrandt ou Rodembach podiam retratar.

SETEMBRO, 19 (1915)

Primeira Guerra Mundial (1914-1918)
Domingo. Dia calmo e triste. Quase todos os hóspedes sobem; eu, porém, fico no hotel. O silêncio que faz é apenas perturbado de vez em quando pelo buzinar rouquenho dos autos que passam em disparada pela estrada monumental. À tarde aumenta o número de autos. Parece-me anormal este fato e pergunto a um criado o que há. É um santo de aldeia que se festeja para este lado da ilha. Passa gente também a pé. Chego ao portão e noto a falta de linha e a falta de vibratilidade da madeirense. É um tipo inexpressivo e morto comparada à brasileira. Não tem aquele garbo, aquela agilidade e aquela graça que direi de corça nata na filha de minha terra. Advinha-se logo que a mulher daqui é fria e não é capaz daqueles grandes lances afetivos que tem as brasileiras.

Ao jantar falo com a tal família a que me tenho referido e palestramos animadamente. Já me parecem, marido e mulher, gente distinta e de perfeita educação. Noto que estão de luto e sei que o trazem por dois filhos que morreram combatendo os alemães na fronteira da França. Tenho visto aqui já diversos pais ingleses nestas mesmas condições e me admiro de que não se queixem. São tristes mas de uma tristeza resignada e digna, sem aquele excesso e aquelas explosões, em sua maioria fictícia, que sempre observei no meu País. Dir-se-á que todo inglês tem a consciência do sacrifício que está fazendo a Inglaterra, e cada família ferida com a perda de um membro, em vez de se abismar num sentimentalismo que seria fatal num latino, fica tranqüilo abafando com um ódio imenso, tributando aos alemães e o propósito firme de mandar até o último varão contanto que tenham a vitória final e vejam esmagado o orgulho extremo mas também (porque não dizer) a bravura extrema da raça alemã.