segunda-feira, 22 de junho de 2009

A DESCOBERTA DA MADEIRA

Ponta de São Lourenço - Ilha da Madeira
O Arquipélago da Madeira é constituído pelas ilhas da Madeira e Porto Santo (habitadas) e grupos de ilhas Desertas e Selvagens (desabitadas). A Ilha da Madeira fica situada a cerca de 700 Km da costa africana e a 1.000 Km de Portugal continental.

As primeiras alusões à Madeira datam da antiguidade clássica, sendo feita referência a paradisíacas ilhas atlânticas. Posteriormente, o Arquipélago foi representado em mapas italianos e catalães do século XIV. No entanto, oficialmente a descoberta data do século XV.

A primeira a ser (re)descoberta, Porto Santo, foi avistada em 1419 (1418 segundo algumas versões), por João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira, depois de muitos dias à deriva pelo alto mar, afastados da sua rota pela costa de África devido ao mau tempo. No entanto, alguns historiadores defendem que estes foram enviados precisamente para colonizar as ilhas que já eram conhecidas dos tais mapas antigos.

A ilha da Madeira seria descoberta no ano seguinte. Reza a lenda que de Porto Santo se avistavam umas nuvens escuras que os marinheiros pensavam ser o inferno (o fumo das almas penadas a arder...) ou o sítio onde os barcos cairiam num abismo, borda fora do mundo!

Apesar destes temores, João Gonçalves Zarco embarcou com alguns homens num barco e foi andando, apesar do pânico da tripulação, até encontrar terra firme: a Ponta de S. Lourenço, à qual foi dado este nome por ser o mesmo do navio do capitão.
Abel Zeferino

domingo, 21 de junho de 2009

PONTE FUNCHAL - OEIRAS

Catedral do Funchal - Catedral de Oeiras


Assunto: Funchal Antigo e os mil encantos da Madeira
Para:
inocente@xyzw.com
Data: Sábado, 20 de Junho de 2009, 17:13


Querido Abel Zeferino


Meu nome é Joca Oeiras, cognome que adotei em função da cidade de Oeiras-Piauí- Brasil e não Oeiras- Portugal como você bem poderia pensar. Sou assessor de imprensa da Fundação Nogueira Tapety - FNT, entidade privada com escopo cultural e sem fins lucrativos que tem sede aqui em Oeiras-PI. Nosso patrono, Benedito Francisco Nogueira Tapety, de nome artístico Nogueira Tapety foi um grande poeta precocemente falecido, em 1918 aos 27 anos de idade, vítima da tuberculose. Foi esta doença que o levou ao Funchal em plena primeira guerra mundial, em 1915. Dessa estada no Funchal o poeta deixou registradas algumas anotações que nós chamamos "Diário da Madeira" (nome de um jornal homônimo existente na época, não sei se ainda existe). Com estes registros, fiz um blog para o qual me utilizei das sua belas fotos antigas, entre outras ilustrações variadas. Terei muito prazer se se dispuser a acessá-lo e, depois, me dizer o que achou dele. Devo confessar que, com a pesquisa iconográfica que fiz, acabei totalmente encantado pela Ilha e, por isso, gostaria de manter contato com pessoas, e, certamente, você é uma delas, que se disponham a conversar sobre a História e a própria vida social da Madeira. Espero que aceite o minha amistosa proposta.

beijos e abraços

do Joca oeiras, o anjo andarilho


AGUARDO RESPOSTA

De: Zeferino Inocente@xyzw.com

Assunto: Res:Funchal Antigo e os mil encantos da Madeira

Data: Sábado, 20 de Junho de 2009, 19:54
Sr. Joca Oeiras

É com muita satisfação que vejo alguém se interessar pela História da Madeira.
Já dei uma olhada no seu blog, mas apenas por 15 minutos e nao tive mais tempo, mas pesquisarei tudo assim que possivel.

Quanto ao Diário da Madeira, não tenho conhecimento desse nome. que eu saiba , em Madeira já havia, desde 1888 o chamado "Diário de Noticias", que ainda existe e pode o consultar neste sitio:
http://www.dnoticias.pt/

De momento não tenho mais tempo, mas voltarei a entrar em contacto consigo, após pesquisar outras informacões que tenho cá.

Abraço Abel Zeferino

domingo, 14 de junho de 2009

SETEMBRO, 15 (1915)

Hotel Reid Palace na Ilha da Madeira

Cheguei ontem pelas 9 horas da noite. Não pude, portanto, gozar do “Araguaia” o panorama da cidade à luz do sol, como esperava. Mesmo, porém, à luz elétrica, o espetáculo é magnífico pela quantidade de luzes e pela extensão em que elas se espalham como num anfiteatro, galgando em alas uma elevação que na bruma da noite pude distinguir, concluí logo que Funchal não era a pequena cidade que imaginei... Hoje verifico, num guia da cidade que comprei, editado em 1910, que a sua população já neste tempo era calculada em 3.000 habitantes. Talvez fosse um efeito da predisposição que eu vinha para achar Madeira muito linda, mas a verdade é que, mesmo à noite, fiquei encantado com a iluminação da cidade que, apesar de feérica, dá-lhe um aspecto bizarro pela natural topografia do terreno, cheio de anfractuosidades. Foi esta a impressão que em mim produziu o primeiro golpe de vista com que olhandodo “Araguaia” e na bruma da noite eu vi a ilha da Madeira.
Uma observação que fiz, mesmo a bordo, foi a do sotaque indigno com que se fala o português. Todos falam cantando e cantando sensivelmente. No Brasil consigna-se este fato entre alguns habitantes do norte; aqui, porém, a coisa é muitíssimo mais exagerada. Ri, intimamente, desta primeira diferença entre o brasileiro e o ilhéu português.
A bordo apareceu um Senhor Souza, empregado do Reid’s Hotel, onde o AntônioVeras aconselhou que me hospedasse. Com este senhor desembarquei numa lancha do hotel, depois de haver entregue a bagagem ao catraieiro indicado por ele. Chegados ao cais, informa o Sousa que o hotel é um pouco distante e seria melhor ir em automóvel.Veio o auto e quando chegamos ao Reid’s fiquei surpreendido: custava 500 réis o transporte que eu no Brasil talvez só fizesse por 5.000 réis. Aí apareceu-me uma senhora que indicou ao Souza o quarto nº 1. E foi neste quarto nº 1 da Vila Vitória (anexo do Reid’s Pálace Hotel) que dormi a primeira noite na Madeira.
Acordei, seriam 8 horas. Abro a janela e um jorro de luz invade o quarto. O panorama que descortino é soberbo: à direita o mar muito calmo e muito verde, à esquerda o monte coroado de névoa e coberto de verdura, para frente quintas e chalés interessantes e pitorescos e lá mais abaixo a cidade com seus telheiros avermelhados de concreto. Faço a “toillete” e desço. Peço o jornal e dão-me o “Diário da Madeira”. É um jornal grande, mas que me parece mal feito. Na sala de jantar um criado solenemente encasacado indica-me uma pequena mesa. Sento-me e sou servido de peixe, ovos, leite, chá, pão e frutas. A esta primeira refeição chama-se aqui almoço. Vejo num anúncio contido num artístico folheto que o Souza me deu, ser a seguinte a ordem das refeições neste luxuoso hotel, onde não me estou sentindo muito bem, por me achar completamente deslocado e fora dos meus hábitos: às 9 horas almoço; à 1 lanche; às 4 chá, às 7½ jantar. Além do mais verifico logo que tudo aqui é inglês e à inglesa desde o dono do hotel aos hóspedes; desde a ordem e horário das refeições aos pratos que vêm à mesa. Depois de ter eu almoçado chega o Souza (é um empregado que não assiste no hotel: vai a bordo, recebe os passageiros, acomoda-se e vai-se, voltando apenas quando é preciso ou quando traz novos hóspedes vindos em vapores que chegam). Saímos juntos e, como eu lhe havia dito ontem à noite que me destinava ao hotel Reid’s, porém o do monte (este Senhor Reid tem aqui nada menos de três hotéis: Reid’s Pálace Hotel, Reid’s Carmo Hotel e Reid’s Mount Park Hotel; é sócio de um banco e tem casa de modas e bordados... o diabo enfim), resolvemos ir à alfândega despachar a bagagem de lá para o Reid’s Mount Park Hotel, e eu subo, depois de ter lanchado no trem das três horas. Na alfândega fomos despachados logo e quando o Souza entregava bagagem a um catraieiro para levá- la ao Monte, aproxima-se um guarda e diz que eu tinha de pagar “capatazia” ou cousa que o valha. Tomei um choque. Supus que me fossem esfolar e pergunto ao homem quando é: “duzentos e cinqüenta réis”, responde-me ele com uma arrogância feroz. “Tableau”!
Sempre acompanhado do Souza volto ao hotel. Tomo o lanche, que acho esplêndido e voltamos os dois à cidade onde, depois de passar telegramas para o Piauí, dizendo ter chegado com boa viagem, e de ter comprado livros (6 volumes por 2.400 e ótimos livros) tomo o comboio para o Monte. À proporção que o comboio subia também a minha admiração pela Madeira. Que beleza de paisagem! Chegados à estação não encontrei o Sr. Fernando, como esperava, pois o Souza me disse ter prevenido pelo telefone a este Sr. Fernando (diretor ou gerente de Reid’s Park Hotel) que me fosse receber à estação no que ele concordou. Falo a uns carregadores que levem a mim e a bagagem (que foi no mesmo comboio) para o tal hotel, e lá íamos quando encontramos o Sr. Fernando que me vinha prevenir não existirem cômodos vagos. Que sentia muito, mas que isto mesmo dissera ao Souza e fora ele Souza então quem não ouviu bem. Desapontado, furioso, desci no mesmo comboio, e se nesta ocasião encontro o imbecil que me fez dar tamanha viagem perdida, esganava-o, sem dúvida. Na volta sentou-se ao meu lado uma linda criatura que pelo tipo me pareceu inglesa. Quando calçava as luvas, a sombrinha, que ela encostara aos joelhos, caiu sobre os mes pés, e, como a tinha juntado e entregado cortesmente sua formosa dona, esta pagou-me com um lindo sorriso a amabilidade que lhe fiz. Durante a viagem olhou-me sempre com interesse, do que concluí que ou essa criatura estava admirada do meu tipo de mulato, que não é muito comum aqui, ou é alguma “demi-mondaine” que “faz olho” por dever de ofício. Chegado à estação o guarda que despachara minha bagagem para o monte perguntou porque havia voltado. Expliquei- lhe tudo e explodi contra o Souza e contra as coisas de Portugal. O homenzinho mostrou-se sentido que eu tivesse me incomodado sem proveito. Ofereceu-me cadeira, prontificou-se a arranjar carro para mim e para a bagagem; enfim foi extremamente amável. Perguntou se eu voltava para o Reid’s Pálace, respondi que sim. Foi ao telefone pediu um carro que dentro de dez minutos chegou à gare. Por tudo isso gratifiquei-o com 300 réis. Os circunstantes, que nada tinham perdido a minha conversação ficaram estupefatos e eu compreendi, pelos olhares admirativos que me lançaram, que havia feito uma extravagância. Às 5 horas dava eu entrada no Reid’s Pálace Hotel pela segunda vez em menos de 24 horas. Procurei o Souza, já não estava. Não jantei bem e vou para a cama sentindo o fígado bem pesado.

SETEMBRO,16 (1915)

Carro de Bois utilizado para transporte de passageiros no Funchal
Dormi mal, não só porque o fígado incomodou-me durante toda a noite, como porque fui acometido de uma insônia terrível. Às oito horas desço para o almoço. Na ponte monumental que fica muito perto daqui (talvez uns 80 a 100 metros) há uma aglomeração. Foi um Sr. Diogo Sorsefield que se suicidou, atirando-se abaixo. A ponte tem 31 metros de altura, de modo que quando o homem acabou de cair era cadáver. O Sr. Diogo era tesoureiro da Junta Geral e dizem que há dias apresentava sintomas de alucinação mental. Tomo o meu almoço e faço, pela primeira vez, um grande passeio aos magníficos jardins deste Reid’s Pálace Hotel, que cada vez me parece mais suntuoso. Fiquei pasmo e admirado como um estabelecimento particular sustenta um jornal como este, monstruoso, maravilhoso, onde vejo plantas, flores e árvores frutíferas de todos os climas. O hotel propriamente (é preciso ter em vista que estou hospedado na Vila Vitória, um simples anexo, uma simples dependência do Reid’s Pálace, o qual só se abre para o “saison”, que vai de novembro a junho – tempo em que há veranistas e turistas de toda Europa) é um palácio esplêndido com elevadores elétricos e todos os confortos que a civilização tem criado e comporta 250 hóspedes com os anexos. Fica eminente à rocha denominada “Salto do Cavalo”, que tem 150 pés de altura, e ao oeste do jardim, que é comum também à Vila Vitória. Imagine-se sobre estes 150 pés um palácio de seis andares, com um ótimo e amplo terraço no segundo andar, donde se domina o Atlântico e se aprecia, portanto, todo o movimento do porto de Funchal. Depois de ter visto o hotel propriamente, volto pelo jardim vendo detalhadamente tudo. Pergunto a um jardineiro que trabalha o nome de uma planta que havia num canteiro com uma variedade excepcional na mesma espécie. Pois não conhece? É a malva.

Pois bem. Existe aqui malva com flores em todas as cores: há as vermelhas, absurdamente vermelhas, há brancas, levemente rosadas, amarelas, enfim, uma variedade que surpreende. Há parreiras constituindo caramanchões de uma extensão fantástica; rosas, trepadeiras de muitas espécies e flores bizarras e estranhas como a estreleta, a tebaíba (rainha das flores), uma linda e grande flor branca, as lílias. Aqui conheço a verdadeira açucena, o cáctus, a magnólia legítima etc. No pomar encontro desde a bananeira até a cerejeira. Tamareiras há em todo o jardim cheias de cachos grandes admiravelmente; vejo não sei quantas espécies de palmeiras; pessegueiros, ameixeiras, macieiras e até mangueiras que, por sinal, estão carregadas de frutos e não tem mais de três metros de altura as que puderam crescer mais. Acho-as interessantíssimas comparadas com as do Brasil.

Desço ao mar pela escada do cais do hotel; examino as cabines de banho (salgado) e daí aprecio a altura da rocha em cima da qual edificaram o Reid’s: é simplesmente dantesco este conjunto e por mais que eu escreva não traduzo, não exprimo. Basta dizer que para chegar ao mar (à praia de banho ou cais do hotel) tive que descer 243 degraus. Desta rocha de 150 pés de altura, disse-me um criado, foi que se precipitou o Senhor Rebouças, um brasileiro que se exilou quando de lá foi deportado o Imperador (isto que para mim é um fato ignorado, confesso-o, fica registrado aqui por conta do criado). Quase a uma da tarde volto para a Vila Vitória, fatigado de ver tanta cousa nova para mim e tudo isto sem ter saído do Reid’s Pálace Hotel.

Tomo o lanche à 1 hora; desço novamente ao jardim e à sombra das tamareiras que formam um pequeno e delicioso bosque começo a compor os primeiros versos da Janua Coeli.

Às quatro horas volto para o chá. É a única refeição que temos em sociedade, isto é, de que nos servimos em uma só mesa. Na sala de visitas e na mesa de centro, que é bem ampla, está uma enorme bandeja com uma alvíssima toalha e um rico serviço de prata, cada peça do qual é de um tamanho exorbitante. Há um enorme bule de chá, um açucareiro, uma leiteira, um bule de água quente, uma terrina (também de prata), com bolos ingleses e duas bandejas cheias de fatias de duas espécies. Ao redor da mesa estão dispostas algumas cadeiras. Poucos hóspedes servem-se destas. A maior ia enche a chávena e vai dispersando à vontade: um toma o sofá, outro uma cadeira de espaldar, este senta-se à cadeira do piano, aquele à da secretaria, aquele outro uma“chaise-longue” e todos, numa prosa animada, tomam chá. Eu observo e não digo, nem percebo nada. Todos são ingleses e falam a sua língua. Há, porém, uma inglesita magrela e feia que a tudo o que lhe falam sibila um “yes” que já me vai irr itando. Parece que esta criatura só sabe de inglês esta palavra e, se houvesse com quem comunicar, propunha para ele o apelido de “Miss
Yes”. Deixo a sala e começo a leitura da “Parme Chautreuse”(sic)*, de Stendahl. Às sete horas, quando tocou o primeiro aviso de jantar, tinha devorado dois capítulos. Subi para fazer a“toillete” de jantar (todos os hóspedes aqui só dançam de “smoking”). Jantei pouco, porque o fígado continua mal. Próximos a mim numa mesa redonda sentam-se três criaturas que começo a observar com interesse: um senhor que aparenta ter cerca de cinqüenta anos, uma senhora mais ou menos da mesma idade e uma rapariga que, no máximo terá 25 anos. As duas senhoras se entendem em espanhol. O homem só fala espanhol quando se dirige à rapar iga, que é sua filha, porque esta não sabe inglês; para todas as outras pessoas nada diz, senão neste idioma.

Depois do jantar dirige-se a mim um hóspede velhusco, de cara jovial, e pergunta em inglês qualquer cousa que não percebo. “I no espeech inglish”, digo-lhe eu. Fala-me então francês e pergunta se sou português. Digo-lhe a minha nacionalidade e entabulamos conversa sobre cousas do Brasil. Ele fala o francês perfeitamente mal, de modo que sinto-me à vontade assassinando a língua alheia. Apesar, nos entendemos bem. Depois de ter ido ele embora, pergunto ao João (nome do primeiro criado) e sou informado de que é um of icial reformado do exército inglês, que viaja para esquecer a dor que lhe deixou a perda de dois filhos mortos em combate com os alemães. Esteve quase a ficar maluco e demora poucos dias na Madeira, devendo embarcar no primeiro vapor para a Colônia do Cabo. Lembro-me de que ainda não vi oSouza para desabafar a propósito da viagem perdida que ele me fez dar ao Monte. Pergunto aos criados e dizem que ele hoje não apareceu. Subo para os meus aposentos e vou dormir depois de ter escrito estas notas, sentindo o fígado sempre pesado e dolorido.

* O poeta quis referir-se ao romance "
La Chartreuse de Parma"



SETEMBRO, 17 (1915)

Médico visitando pacientes no Funchal
Oito horas. Lindo dia de sol claro como o norte do Brasil. Vejo o jornal: notícias da guerra que não adiantam nada; ótimo e alvissareiro artigo sobre a paz; notícias do suicídio de ontem e diz que o homem deixa mulher e filhos. Almoço e continuo a leitura do “Parme Chartreuse” * que vou achando maçante, mas não atrevo a abandonar, porque traz no alto o nome Stendahl. Depois do lanche vou para o jardim. Sento-me num banco quando me surge do bangalô, que fica próximo, uma vivaz e atrabiliária criança. Dirige-se a mim e eu faço-lhe agrados. Deixo-a virar bolsos à vontade, quebrar a ponta do lápis, esfolhar o livro que trago etc.

Tudo isto, porém, calado, sem responder às perguntas que ele me faz, simplesmente porque não entendo (a criança é inglesa). Ele, já aborrecido, volta-se para mim e exclama: “You no espeech”!? Nisto surge uma senhora do mesmo bangalô, que me fala sempre em inglês e digo lhe: “I no speech inglish”. Ela procura retirar a criança e pede desculpas. Digo-lhe que não me causa incômodo, que gosto de crianças, que pode deixar o pequeno. Ela compreendeu, porque retirou-se balbuciando um “thank you”. Depois de ter aturado muito tempo a impossível criança, que sei agora chamar-se Douglas, por me ter dito uma criada que passava, deixei-a e subi para a rocha a cuja borda está construído o Reid’s. Lá abaixo estão umas inglesas tomando banho. Fico um tempo vendo-as nadar e volto à casa. Aí encontro o Souza que pede mil desculpas e procura justificar-se por todos meios. Digo que não houve nada e, para mostrar que não me zanguei, senão no momento, gratifico-o com 2$ pelas viagens que deu comigo auxiliando-me a fazer compras etc. etc... Janto bem e apesar de ter achado esquisitas estas comidas inglesas, já me vou habituando e começo a achá-las deliciosas. Depois do jantar, há um hóspede bisonho que vai ao piano e executa uma porção de lindas músicas entre os quais a“Soir d’Eté” de Fourdram, “Chant du Printemps” e outras belas músicas de Mendelssohn. O músico é irmão da inglesita do “yes”. Depois foi meu camarada.

* O poeta quis referir-se ao romance "
La Chartreuse de Parma"

SETEMBRO, 18 (1915)

Nos jardins do Hotel Belmonte

Dia banal e desinteressante foi este nas suas primeiras horas. Depois do almoço animou-se mais. O Souza traz novos ingleses que tomam cômodos. Há uma bonita senhora trintona e com ares de gente fina; um casal de burgueses (ao que me parece) balofos e um“dandy” que está de vez em quando a consertar o monóculo que traz entalado no olho direito.
Desço ao jardim e depois de um grande passeio volto, tomo um banho e o lanche. Retorno ao jardim, aprecio o banho das inglesas e, à hora do chá, chego à Vila Vitór ia. O tal senhor do casal burguês, que eu chamei balofo, sorri-me amavelmente e trava conversa em português legítimo.Já me parece simpático e descubro nele qualquer cousa de gente fina. A senhora é também muito atenciosa e amável. O jantar foi mais alegre. Converso com esta família sobre cousas brasileiras e troco também algumas palavras em francês com o músico de ontem que fala regularmente esta língua. Depois do jantar vou ao terraço e vejo uma paisagem assombrosamente linda. A lua e seu simples reflexo no mar calmo da enseada do Funchal produz um quadro tão soberanamente belo que só Rembrandt ou Rodembach podiam retratar.

SETEMBRO, 19 (1915)

Primeira Guerra Mundial (1914-1918)
Domingo. Dia calmo e triste. Quase todos os hóspedes sobem; eu, porém, fico no hotel. O silêncio que faz é apenas perturbado de vez em quando pelo buzinar rouquenho dos autos que passam em disparada pela estrada monumental. À tarde aumenta o número de autos. Parece-me anormal este fato e pergunto a um criado o que há. É um santo de aldeia que se festeja para este lado da ilha. Passa gente também a pé. Chego ao portão e noto a falta de linha e a falta de vibratilidade da madeirense. É um tipo inexpressivo e morto comparada à brasileira. Não tem aquele garbo, aquela agilidade e aquela graça que direi de corça nata na filha de minha terra. Advinha-se logo que a mulher daqui é fria e não é capaz daqueles grandes lances afetivos que tem as brasileiras.

Ao jantar falo com a tal família a que me tenho referido e palestramos animadamente. Já me parecem, marido e mulher, gente distinta e de perfeita educação. Noto que estão de luto e sei que o trazem por dois filhos que morreram combatendo os alemães na fronteira da França. Tenho visto aqui já diversos pais ingleses nestas mesmas condições e me admiro de que não se queixem. São tristes mas de uma tristeza resignada e digna, sem aquele excesso e aquelas explosões, em sua maioria fictícia, que sempre observei no meu País. Dir-se-á que todo inglês tem a consciência do sacrifício que está fazendo a Inglaterra, e cada família ferida com a perda de um membro, em vez de se abismar num sentimentalismo que seria fatal num latino, fica tranqüilo abafando com um ódio imenso, tributando aos alemães e o propósito firme de mandar até o último varão contanto que tenham a vitória final e vejam esmagado o orgulho extremo mas também (porque não dizer) a bravura extrema da raça alemã.

SETEMBRO, 20 (1915)

Cena de versão cinematográfica (1934) da Opereta "A Viúva Alegre"*

Hoje pela manhã, fui ao vice-consulado do Brasil. Não há Vice-Cônsul atualmente, porque o Dr. Ferrer, que ocupava este cargo, faleceu em Lisboa há pouco tempo. Está encarregado dos negócios do Brasil o Sr. Raul Teives, agente consular, que me recebe com a maior gentileza. Mostro-lhe os meus papéis: título de bacharel, passaporte etc, etc. Faz-me oferecimentos de praxe. Agradeço-lhe, fazendo sentir que me apresentei apenas porque estou aqui inteiramente só; vim bastante doente e, no caso de me suceder alguma cousa desagradável que não me deixe tempo a deliberar, parece-me que só o Cônsul do meu país verdadeiro pode tomar interesse por mim. Dei-lhe o meu endereço e o meu nome, bem como o de minha família a quem devia lhe comunicar o que me sucedesse sem me dar tempo a deliberar. Noto que o criado do vice-consulado é um tipo ultracômico: fisicamente é o Saraiva de Lemos e os modos são perfeitamente do Niegus (da Viúva Alegre). Esplêndido! Foram estas as ocorrências mais notáveis do dia e mesmo as únicas que merecem referência.



*1905: Estréia de "A Viúva Alegre" em Viena

Viena, 30 de dezembro de 1905. Estréia de opereta de Franz Lehar no Theater an der Wien. O programa prevê uma história de Pontevedrino, um país tão pequeno que não pode ser encontrado em mapa algum.

O governo de Pontevedrino teme que a viúva alegre gaste sua fortuna em Paris ou caia nas mãos de um usurpador, o que provocaria a falência do principado. Para que o dinheiro permaneça no país, é preciso que um pontevedriano seduza e case com a viúva. Trata-se da tarefa perfeita para o charmoso conde Danilo, que conhece todos os truques para conquistar as mulheres.

Ao fim da estréia, a 30 de dezembro de 1905, a opereta – que termina com a promessa de casamento da viúva alegre – recebeu um aplauso apenas moderado. Segundo o maestro da Musikalische Komödie de Leipzig, Roland Seyfarth, foi o que hoje se chamaria de fiasco.

Depois da fracassada estréia, o diretor do teatro distribuiu ingressos gratuitos. A conseqüência foi que o teatro lotou e a peça virou um sucesso. Os ingressos para todas as apresentações seguintes se esgotaram.

Logo espalharam-se os rumores de que o texto de Viktor Leon e Leo Stein parodiava a política dos Bálcãs. Pontevedrino, na realidade, se chamaria Montenegro, onde, no início do século 20, teria existido um príncipe herdeiro dado à boa vida.

A música foi composta por Franz Lehár (1870–1948), filho de um maestro de banda militar. Lehár foi um compositor inspirado, que atuou como mestre em várias bandas imperiais.
Além de operetas, também compôs músicas dramáticas, como mostram trechos de Tatjana (versão revista da sua primeira ópera Kukuschka, de 1896), bem como a curiosa Febre, de 1915, um poema tonal para tenor e orquestra, inspirado na experiência trágica do seu irmão, morto na Primeira Guerra Mundial.

Franz Lehár já era, portanto, um compositor conhecido. Mas foram as operetas – sobretudo A Viúva Alegre e O País do Sorriso, de 1929 – que lhe deram fama mundial. Segundo Roland Seyfarth, com A Viúva Alegre, Lehár descobriu um estilo próprio e inconfundível de composição, marcado por fortes contrastes. Oscila do sentimentalismo popular ao embalo mundano de animadas valsas e ousadas marchas.

SETEMBRO, 21 (1915)


Acordei muito tarde. Quando desci já todos tinham almoçado. Tomei frutas leite, pão e chá. Fui, depois, passar a limpo “Janua Coeli” para mandar ao Piauí. Ao chá conversei com a família a quem me tenho referido ultimamente e com quem vou em boas relações.

Fiz, depois, um passeio no jardim e como me tenha encontrado com o inglês a quem aludi no dia 18 (o do monóculo) trocamos uma cortês saudação (em francês) e seguimos juntos. O homem não é “dandy” nem “snob” como me pareceu à primeira vista: é um respeitável (apesar de novo, relativamente) cônego presbiteriano, que na palestra revela inteligência e cultura. No “bunglow” encontramos o Sr. Reid. Conversamos os três, quando, da alameda perpendicular à que paramos, surgem dois tipos. Um apresenta o outro ao Sr. Reid, cortejam e seguem. Eram:um jovem filho de um comendador qualquer e o menos jovem, filho o Sr. Visconde de Ribeira Brava e Governador Civil da cidade. O filho do Visconde (não é por mal dizer) pelos ares, pelos modos e pelo próprio físico é um néscio. Temos 25 graus à sombra, o que para aqui é calor, e o animal anda enluvado! Foi o único tipo que já vi aqui calçando-as; logo... também foi o único Governador que no hotel tem andado.

Depois do jantar fui concluir uns versos que comecei ao meio-dia e como verificasse que não tinha cigarros, perguntei ao criado se os havia no hotel.Traz-me uma carteira de flandre, com 20 cigarros, do Cairo. “Regina”, da casa Cousis, e cobra- me, por eles, 500 réis (1.500 brasileiros mais ou menos). Safa!

SETEMBRO, 22 (1915)

Nogueira Tapety e Miguel Rosa

Dormi mal, ou antes não dormi esta noite. Fui vítima de uma terrível insônia e quando consegui fechar os olhos eram quase cinco horas. Levantei-me às dez horas. Desço ao salão de jantar, para o almoço, e encontro a conta debaixo do prato. Fico escandalizado! Cobram-me 4½libras por 7 dias de hospedagem. Pago, contudo, sem protesto. A distinta família a quem me tenho referido ainda almoçou hoje e logo depois foi embarcar no“Adreola”, para Las Palmas.

Passei o dia escrevendo cartas e cartões para o Brasil e que devem seguir amanhã pelo “Hurayna”. Escrevi ao Dr. Miguel Rosa, ao Corinto, às Dª. Emília, Alzira e Rosa Freire, às Mendes, à Dª. Laura Veras, ao Cavalcanti, ao Mirocles, Antônio, Nestor e Merval Veraz, ao Cel. Franklin, ao Verinhas, ao meu pai, ao Jeconias, ao José, Amália, Amélia, Joaquina, Maria de Jesus, à mamãe, ao Pedro Sá.

Antes do jantar desci ao jardim e depois de ter jantado, já quando me recolhia, passaram dois automóveis cheios de rapazes alegres e mulheres do “demimonde”, numa alegria invejável, cantado a vassourinha, mas a vassourinha brasileira autêntica! Ah! meu tempo! Também eu já fui assim e hoje expio o abuso que fiz dessas noitadas alegres. Contudo, não me arrependo, nem me queixo. Aceito o sofrimento de cabeça levantada e rindo da mesma forma que ria ao estragar a vida. Escrevi até onze horas, e nisto se foi o dia.

SETEMBRO, 23 (1915)

Funchal
Ainda dormi mal. Almocei pouco e escrevi mais cartas, visto que o vapor só sairá amanhã. Fez sol hoje e lindo sol como o do Brasil. A montanha está descoberta, sem uma nuvem e permite que eu a veja, pela primeira vez, em todo o seu esplendor, pois, desde a minha chegada, ela anda sempre coberta de névoas ou varrida pelas nuvens que impedem a perspectiva. Diz o criado do hotel (o João) que ela hoje “está em exposição”. E é precisamente isto. Os criados, às vezes, dizem estas coisas que nós outros, homens de espírito, levaríamos muito tempo para exprimir com propriedade e justeza. O resto do dia foi completamente desinteressante.

SETEMBRO, 24 (1915)

Dormi melhor que as noites precedentes e desci mais cedo. A sala estava cheia. Havia ingleses em todas as salas e em todos os corredores: desde o “fumoir” até a sala de visitas; do salão de jantar ao terraço havia um burburinho terrível produzido pelas mulheres que conversavam toda ao mesmo tempo. Tem-se a impressão de estar numa pequena feira. Puxa, que gente faladora! Há uma bonita inglesita que me chama atenção. Pergunto ao João donde veio tanta gente e sou informado que são passageiros do “Walmar Castle”, que faz viagem à tarde para o Cabo da Boa Esperança. Ao lanche havia pouca gente e ao jantar éramos apenas cinco pessoas no salão ao ar livre, que nunca vi com menos de 16 a 20. Depois do jantar o hotel ficou numa tristeza de cemitério e, pela primeira vez, o senhor argentino falou comigo. Disse alguma cousa em espanhol, que eu respondi em português. Também a nossa conversa foi curta.O Douglas foi embora. Que pena! Já estava tão meu amigo. E vou dormir hoje tendo o fígado um tanto pesado. Calma, calma.

SETEMBRO, 25 (1915)

Baixa do Funchal. Clique na imagem para ampliá-la
Indigníssimo dia. Levantei-me às 10, apesar de ter acordado cedo. Não fiz nada. À tarde, depois do chá, fui ao jardim e transpus o cais que barra o precipício em frente do Pálace Hotel. Satisfiz meu desejo e, num cáctus que está à borda do abismo, deixei o meu nome gravado em uma folha.

Quando voltei para o jantar, o argentino que me observara, não sei de que ponto, arriscou uma delicada e paternal censura à minha temeridade. Disse que não convinha fazer aquilo, pois podia eu escorregar e, demais, que prazer achava em me arriscar sem proveito? Concordei que tinha razão e prometi não repetir a temeridade como ele classificou o meu ato. Senti o fígado pesado e um pouco febril, depois de jantar passo melhor.

Faz luar, mas um luar baço, morto, inexpressivo, que não tem aquela suntuosidade espiritualizante do luar americano... vou dormir com saudades do luar que há de estar fazendo no Brasil.

SETEMBRO, 26 (1915)

Câmara dos Lobos
Domingo, dia tristíssimo; almoçamos no hotel apenas 5 hóspedes; todos os outros andam em passeios ao Monte, a S. Martinho, à Câmara de Lobos etc. Ao lanche parece apenas os mesmos cinco. Há uma regata que está anunciada para as 3 horas. Convidam-me para ir assisti-la na lancha do Sr. Reid com a família argentina, e não aceito. Fico só com os criados.


Pelas 4 horas subo ao Pálace e do “balcony” (terraço) vejo que há muita gente no Monte da Pontinha, onde se realizam as regatas. De vez em quando estruge uma valente salva de palmas. É a apoteose ao vencedor. O jantar foi triste; em compensação parece que vou ter boa noite, porque tenho sono.

SETEMBRO, 27 (1915)

Levantei-me cedo e pedi o jornal. Não tem nada que se possa ler sem náuseas: uns versos indignos de um padre idiota e pouca coisa mais; tudo, porém, igual aos versos do padre.
Estive inquieto todo o dia à espera de um telegrama do meu correspondente no Porto, mandando uma ordem de pagamento que pedi com urgência. Diabo! Depois de amanhã é quarta-feira e, às quartas-feiras, quando a gente vai tomar a pr imeira refeição, encontra a conta da semana sob o prato. Ora, eu estou em condições “delicadíssimas” (como diria o Antônio Campos) porque o cobre que me resta não basta para as despesas da semana. Que fazer? Depois de muito pensar, achei uma solução perfeitamente aceitável: ali no “Diário da Madeira” anuncia-se sempre uma casa de penhores; pois bem, se o telegrama do Porto não chegar até amanhã, pelas 10 horas, vou com o meu anel de bacharel ao prego e está salva a situação. Pela primeira vez vai ele me ser útil de alguma forma. Penso que não me desdouro procedendo assim, pois cada um, na apertada hora, vale-se do que tem. Demais, eu me sentiria mal se fosse obrigado a pedir moratória no hotel, pois até certo ponto precisaria humilhar-me e um brasileiro não se humilha nessas paragens. E é sob este pensamento que se esvai o dia. Contudo, jantei bem. Depois do jantar chega o telegrama salvador. Ufa! Respiro e vou dormir descansado.

SETEMBRO, 28 (1915)

Licores caem bem no inverno

O jornal de hoje traz, numa crônica, notícia interessante, mas que só pode ser falsa; irritou muito o pessoal cá do hotel. É o caso que o tal cronista – um sujeito que esteve hospedado aqui – conta ter pago por um banho no Reid’s Hotel 9 shillings (9$ brasileiros, aproximadamente, no câmbio atual).

Almocei bem e ainda estou à mesa quando um criado me previne que. da “Casa Blandy”, avisam existir lá uma ordem a meu favor. – Diga que estou ciente e que mais tarde aparecerei, respondi afetando uma superioridade, um desinteresse e uma falta de precisão que eram absolutamente falsas. Às duas horas desci, recebi o bago e comprei os artigos de que precisava: livros, sabonete, extrato, cigarros etc., voltando a casa antes das 4 horas. Cai uma chuvinha miúda e aborrecida que, felizmente, cessa logo, pelo que, apesar da umidade, resolvo fazer sempre o meu passeio ao jardim. As inglesas não vieram ao banho. Sinto frio, tenho as mãos geladas. Vou ao termômetro e vejo que temos 19 graus à sombra, não há pois motivo para tanto. Janto, e como ainda tenho frio, tomo um beneditino para aquecer. O frio insiste, por isto vou para cama.

SETEMBRO, 29 (1915)

Funchal
Acordo cedo e desço ao almoço. Contra todas as regras e precedentes não encontro a conta sobre a mesa. Garanto que isto só aconteceu porque recebi dinheiro para o respectivo pagamento. Não chegasse a ordem do Porto me teriam ido levá-la ao quarto. Chove um pouco, por isso não desço ao jardim. Tomo banho e vou ao lanche. Sobre a mesa está a conta. É menor que a da semana passada (29.700). Pago.


Depois do jantar apeteceu-me ir a um cassino (Cassino Leão) que fica lá mais abaixo e se avista perfeitamente daqui. Saí na direção dele, mas tenho acanhamento de entrar só. Passo pela porta e, a pé, vou até a cidade. Perco-me de propósito.Quando estou completamente desorientado procuro sair da Praça da Constituição, no jardim municipal, de onde saberei tomar rumo, mas em vão. Depois de bem fatigado, resolvo interrogar um policial que gentil e maneiroso me acompanha à Praça da Constituição, que estava bem perto e de onde subo em auto.

SETEMBRO, 30 (1915)

Em vista de estar muito grande a minha despesa aqui, penso em ir para o Monte, onde os hotéis são mais baratos. Comunico ao Souza e este desaconselha-me e intimida-me. Diz que não devo fazer isto, pois ao Monte faz muito frio, sobretudo agora que vai começar o inverno; diz que dá esta opinião em meu benefício e não tem ele em vista o interesse de ficar eu no “Pálace”; que eu mesmo vejo todo o dia no jornal notícia de pessoas daqui que lá estiveram e que agora vão descendo por causa do frio. Estes argumentos não deixam de me infernizar, apesar de não crer que o Souza tenha real interesse por mim, o que seria absurdo. Resolvo ouvir um médico e decido que seja o Dr. João Ferreira, que se anuncia no “Diário de Notícias” como especialista em doenças de pulmão; como hoje não há mais tempo para isto adio para amanhã. Passo o resto do dia lendo as curiosidades e anedotas do “Almanaque Bertrand”.

OUTUBRO, 06 (1915)

Monumento ao General Pinheiro Machado, assassinado no dia 09 de setembro de 1915
Amanheci indisposto. Ontem à noite, depois de ter chegado do passeio que fiz ao Monte, comecei a me sentir mal. Jantei sem apetite e, quando, pelas 10 horas, me recolhi, tive um ligeiro escarro de sangue. Fiz, eu mesmo, uma injeção de hidrastinina.

Hoje pela manhã, tive outro escarro sangüíneo, mais vivo que o de ontem. Não sei se deva atribuir isso ao exercício que fiz ou à garoa que repentinamente começou a cair no Monte, quando lá estive, e que me apanhou sem guarda-chuva e sem sobretudo, ou se ao choque que tive ao ler a inesperada notícia do assassinado do General Pinheiro Machado, que só ontem soube, como ficou dito.

Passo o dia triste e temendo alguma hemoptise, apesar de, logo pela manhã, ter começado a tomar uma fórmula de “hidrastis” com “hamamelis”, em partes iguais. A enfermeira do argentino nota a minha tristeza, à noite, e pergunta por minha saúde. Digo-lhe que vou sem alteração. Apesar de tudo janto bem e, como depois de jantar sinto frio, calcei umas luvas . Esta sensação de frio ainda me abate e impressiona mais por que vejo que o termômetro marca 20 graus de temperatura, que não pode determinar o frio que eu sinto. Recolho-me cedo e aparentando absoluta calma, quando tenho a alma num verdadeiro desespero. É possível que eu tenha vindo de minha terra para morrer na Madeira, sem ter um seio amigo onde amparar a cabeça na hora extrema? É sob este pensamento desolador que me meto na cama e durmo.

OUTUBRO, 07 (1915)

Marcelo Grassmann, sem título gravura em metal
Amanheci me sentindo melhor. Esta manhã tive ainda um escarro de sangue, mas muito ligeiro. Passei o dia lendo o “Almanaque Bertrand” e atacado da mais dolorosa nostalgia.

Lembro-me de Teresina e das pessoas amigas, das Mendes, de madrinha Emília; lembro-me de todos e tenho saudades dos meus como nunca. Que cousa horrível estar absolutamente só como estou aqui, sem uma afeição, sem um conhecido ao menos e, além disto, doente.

O hotel, para completar a minha desolação, está vazio e os únicos hóspedes que ficaram comigo foram: o argentino, filha e a enfermeira. Eles não falam português e só com dificuldades nos entendemos em espanhol, por isto os evito. Há, também, uma senhorita inglesa, Miss Shapland, com quem nunca me entendi e que é como se não existisse. Assim, passei um dia doloroso. Às seis da tarde tive febre (37,4 graus de temperatura) mas agora já não a sinto e tenho apenas 36,9. E vou para cama, resolvendo as minhas saudades. Acabo de escrever esta nota com lágrima nos olhos.

OUTUBRO, 08 (1915)

Dormi muito. Só às nove me levantei. Não tive mais nenhuma alteração. Sinto-me relativamente mais tranqüilo e disposto. Tomo um banho quente depois do almoço. Vou ao jardim para escolher um sítio onde possa dormir tranqüilamente a sesta, depois do lanche. Volto sem ter encontrado um que me convenha, pois o quero bem ao abrigo do vento. Tomo o lanche e deito-me num sofá lendo o “Almanaque Bertrand” (a que está reduzida minha literatura!).

Sinto sono e durmo um pouco, o que não me parece ser bom sinal. Acordo quase à hora do chá (4 da tarde) e tenho muita sede. Depois de sono, sede; sintoma de febre que, felizmente, não se manifestou até agora, pois tenho apenas 36,7 graus de temperatura. E com esta temperatura vou para a cama.

OUTUBRO, 09 (1915)

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Durante o dia nada de registrável. Resolvo ir hoje ao “Pavilhão Paris”, onde devem estrear o Sr. Chefalo e Madame Palermo. Que se dizem os maiores prestidigitadores do mundo e, apesar de ter, às 7 horas, 37,3 graus de temperatura, o que é sinal de um pouco de febre, vou. O cinema é pequeno e relativamente mal montado. Qualquer dos de Pernambuco é bem superior. Os Srs. Chefalo & Palermo não são maus artistas – não é o gênero em que trabalham. Cenários riquíssimos, “mise-em-scène” deslumbrante, como tenho visto muitos poucos. Gostei da canção cantada por Madame Palermo em que a platéia fazia coro. É uma canção popular que toda a gente aqui sabe e como o Sr. Chefalo convidasse a platéia a fazer o coro, esta obedeceu e saiu-se esplendidamente. Bem interessante; gostei. E vou para a cama apenas com 37 graus de temperatura.

OUTUBRO, 10 (1915)

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Dormi mal, porque me sobreveio uma insônia maldita. Contudo, sinto-me bem e almoço como um soldado alemão depois de uma vitória. Depois do lanche, o hotel é invadido por uma verdadeira onda de oficiais ingleses e passageiros da mesma nacionalidade que viajam para sua terra a bordo do “Balmoral Castle”. A bordo do mesmo navio vem um grande contigente (1.600 homens) inglês que se destina ao matadouro de “La Base”. Chega para o hotel mais uma família composta por uma velha, uma senhora menos velha, um freguês já bemusado e um pequeno de olho vivo e cara inteligente. Ao jantar recebo uma carta do meu correspondente no Porto mandando que eu recebana “Casa Blandy” o dinheiro que precisar até 900$ (noventa escudos). Recolho-me cedo para ver se hoje passo melhor noite que ontem.

OUTUBRO, 11 (1915)

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Ainda e sempre a maldita insônia. Não dormi cousa nenhuma, mas absolutamente nada. Pensei toda a noite em mil cousas, inclusive em morrer. Pela manhã, depois do almoço fui à “Casa Blandy”, apresentei a carta de crédito e recebi cento e cinqüenta escudos. Depois, em companhia do Souza, fui a diversas casas comprar objetos de que tinha necessidade e a uma alfaiataria onde comprei (mequei, se diz aqui) roupa de flanela (camisas, ceroulas e meias) e mandei fazer um terno, uma calça e um sobretudo, todos da melhor forma, por 45$ mil réis. Achei baratíssimo, pois no Brasil não os teria tão bons por menos de 250$ e faço logo o plano de mandar fazer muita roupa quando tiver que voltar. Depois do lanche fui ao jardim e demorei pouco porque faz frio (17 graus). Hoje não tomei café ao jantar para ver se assim consigo dormir.

OUTUBRO, 12 (1915)

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Ainda não consegui dormir esta noite ou antes não consegui dormir naturalmente, mas cheguei a este resultado por meio de uma injeção de morfina que eu mesmo fiz. Como estivesse sempre atacado a insônia, lembrei que na minha bagagem devia restar uma ampola de morfina –sobra das que Mirocles me aplicou em Parnaíba e que eu pus na valise ao arrumar. Vou procurála e tendo-a encontrado fiz a aplicação que deu resultado pronto. Pela manhã fui ao médico a quem contei todo o ocorrido da semana (escarros sangüíneos, de 6 a 7, febrícula etc.). Dá-me ele novos remédios com a mesma base dos anteriores que resolvo não tomar por completo, fazendo uso apenas do bromural quando não puder dormir. Passo regularmente o resto do dia que não tem nada digno de registro. A família que chegou às 10 foi embora.

OUTUBRO, 13 (1915)

Cristino Castelo Branco e Esmaragdo Freitas

Consegui dormir depois de 2 horas da manhã à ação das pastilhas de bromural. Contudo, amanheci bem disposto e fui à cidade dar segunda prova na roupa que mandei fazer.


Vou à Tipografia Esperança procurar saber quanto sai o livro do Esmaragdo, se ele o quiser tirar aqui e escrevo-lhe mandando o preço (200$ fortes mais ou menos), conforme ele pediu. Escrevo, também, ao Corinto mandando uns versos para serem publicados. Resolvi, de hoje em diante e por minha conta (sem dar satisfação ao médico), usar o agrião em larga escala e recomendo a um criado que me faça comprar, todo dia, um porção dele. Isto foi uma idéia que me veio assim de momento, uma inspiração que talvez me venha salvar.


Quando ao meu estado de saúde nada que mereça atenção.

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Esmaragdo de Freitas

Nogueira Tapety
Pertence ao nobre grupo do eleitos.
É sóbrio em tudo, mas correto em tudo,
E o nome dele é um desses nomes feitos
À custa de talentos e de estudo.
Tem publicado aqui contos perfeitos
E impecáveis na forma, sobretudo;
Mas, criticando, conquistou defeitos,
Pois, criticando, é franco e, às vezes, rudo...
Intransigente e tanto, como artista,
E faz questão cabal pela sintaxe,
Mostrando-se até nisto civilista...
Faz guerra à convenção, faz guerra à praxe
E, em questões de caráter, é purista,
Pois a ninguém se dobra, nem que rache!

(Nascido a 2 de julho de 1887, na cidade de Floriano, no Piauí, Esmaragdo de Freitas e Sousa, apesar de cinco anos mais velho do que eu, foi meu companheiro de turma na Faculdade de Direito do Recife, onde recebemos o grau de bacharel a 11 de dezembro de 1911. Antes cursara o primeiro ano de Medicina na Faculdade da Bahia, resolvendo, porém, abandonar os estudos médicos e aderir ao bacharelismo, que lhe pareceu mais de acordo com as tendências do seu espírito.
No ano da formatura, escreveu em versos, no “Jornal do Recife”, o perfil dos companheiros, dado que ele era, desde aquele tempo, às lides literárias e ao jornalismo, muito ligado então a Adalberto Marroquim, a Da Costa e Silva, a Mário Rodrigues, a Antônio Lopes.
Escrevendo o perfil dos colegas, era natural que um destes escrevesse o dele.Incumbiu-se disso Nogueira Tapety, uma das melhores inteligências da turma, poeta inspirado, arrebatado à vida em plena mocidade – in Escritos de Vário Assunto, Cristino Castelo Branco, Editora Pongentti, Rio de Janeiro, 1968).

OUTUBRO, 14 (1915)

Atribui-se poderes medicinais ao agrião

Ainda para dormir precisei de brumoral. Amanheci indisposto e sentindo ligeiras dores no pulmão direito, que, felizmente, desapareceram depois do almoço. Quando desci havia um grande agrupamento na ponte monumental: fora um alfaiate que se precipitara do alto e pôs assim termo à vida. É este o segundo que se dá depois de minha chegada. Parece que esta ponte é o lugar preferido pelos suicidas da Madeira, apesar de haver precipícios bem mais altos. Li hoje, de um fôlego, “Os Espectros”, Ibsen, que comprei ontem na Tipografia Esperança; durante todo o dia usei e abusei do agrião. Também o criado trouxe do mercado um maço enorme que custou a soma “fabulosa” de 40 réis. Jantei bem e vou dormir satisfeito da vida.
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AGRIÃO
Família Cruciferae
Sinonímia popular:Jambu, agrião-da-água, berro, agrião aquático, agrião do rio
Parte usada O vegetal inteiro
Propriedades terapêuticas Depurativo, antiescorbútico, diurético, antidiabético, anti-raquitismo, expectorante, ungüento, cicatrizante
Princípios ativos ; Iodo, potássio, fósforo, óleo, sais minerais, vitaminas, óleo essencial; glicosídeos, gliconastursídeo. Fermento (mirosina). Sais minerais, vitaminas, proteínas, carotenos, clorofila.
Indicações terapêuticasTuberculose, afecções pulmonares, tosse, bronquite
Origeinária da Europa, aclimatou-se bem no Brasil. .
Exige solo poroso, estercado e com muita umidade. Erva de sabor picante, normalmente usada em saladas. Herbácea pequena, que atinge de 15 a 30 cm de altura. Possui caule tenro, oco, carnoso e nodoso, onde se apresentam 2 tipos de raízes: as finas e brancas que surgem nas axilas das folhas, e as principais que fixam a planta na terra.As folhas de coloração verde-escuro, bem intenso, são partidas em segmentos nas formas arredondadas ou ovais e reunidas geralmente em grupos de 3 a 7u.As flores são brancas e pequenas, com quatro pétalas. Para um bom desenvolvimento, deve ser plantada em local de água corrente, como na beira de rios, ou colocando as sementes em caixotes, em local seco, e depois transplantadas as mudas para local definitivo.Pode-se utilizar também o plantio por meio de estacas. Geralmente é cultivada em canteiros, com o solo saturado de água por meio de irrigação, e cobertos por uma fina camada de esterco de curral.A colheita pode ser feita entre quarenta e sessenta dias após o plantio.A espécie de agrião de terra enxuta, cujo plantio pode ser feito o ano todo, prefere lugares frescos e sombreados, e as folhas são pequenas. O agrião d´agua, cujos ramos devem ser plantados perto de nascentes, onde a água escoe mansamente, tem as folhas maiores.É um vegetal recomendado pelo seu valor nutritivo, teor de vitaminas e ótimo paladar, com odor característico e sabor francamente amargo e picante. As folhas somente devem ser coletadas quando aparecem as flores.

OUTUBRO, 15 (1915)

Em cima: da esquerda para a direita : Leon Tolstoy. capa de seu livro, e Ludvig vo Beethoven
Em baixo: bridgetower, novamente a capa do livro do Tolstoi, a capa da partitura da sonata e, finalmente, Kreutzer, o violonista homenageado
Amanheci ainda indisposto, mas esta indisposição passou logo. Tomei um esplêndido banho e começo a ler “A Sonata a Kreutzer". Chega da Europa, no “Araguaia”, uma família inglesa com muita bagagem. Compõe-se a tal família de dois senhores e uma senhora. Recebo uma carta do Eduardo Sá prevenindo que ainda não está no sanatório porque não há cômodo. Este Eduardo é um brasileiro que foi meu companheiro de viagem e se destinava ao Sanatório de Guarda, que dizem ser excelente. Pedi- lhe que me escrevesse mandando dizer como era a vida no tal Sanatório, qual o regime, quando se despende e quais as condições de admissão.
Durmo um pouco depois do lanche. Ao jantar, a enfermeira do argentino, a quem me queixei das insônias que tenho sofrido ultimamente, fez o criado voltar com a bandeja de café que me trazia e com uma autoridade de quem pode, proibiu-me o uso do café. Obedeci e recolhi-me cedo.
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Sonata para violino e piano nº 9, em lá maior, op. 47, de Ludwig van Beethoven (1770-1827) foi inicialmente dedicada a George Augustus Polgreen Bridgetower (1779-1860), um violinista mulato da Polónia e que depois, como relata a tradição, por uma fútil questiúncula amorosa, acabou por ser presenteada a Rodolphe Kreutzer (1766-1831), um violinista francês que tinha visitado Viena em 1798 e que Beethoven o descreveu como um “querido e afável companheiro que durante sua permanência em Viena me proporcionou muito prazer” (Carta 99).

Quais as origens históricas desta sonata? Em 1790, Bridgetower emigrou para Londres e depois, em 1802, começou por visitar a Europa continental numa ‘tournée’ de concertos para mostrar o seu virtuosismo violinístico e ganhar assim algum dinheiro. Chegou a Viena no início de Abril de 1803. O príncipe Karl Lichnowsky (1756-1814), aristocrata da corte de Viena (Áustria), amigo e mecenas de Beethoven, já desde 1792, apresentou-o ao compositor e este, entre 1802-1803, compôs para Bridgetower uma sonata para violino e piano, cuja data da estreia foi anunciada para o dia 22-05-1803. Por fim, talvez porque a sonata ainda não estivesse pronta, o certo é que o recital só ocorreu passados dois dias, isto é, no dia 24. Uma partitura autógrafa fragmentária da obra intitula-a de «Sonata Mulattica» precisamente porque Bridgetower era mulato. Segundo uma tradição, Beethoven e Bridgetower tiveram uma forte discussão sobre o aspecto duma mulher… Beethoven, furioso, desiste da sua oferta que tinha feito, não a catalogando por sonata «Bridgetower», mas, sim, de «Kreutzer», porque acaba por a dedicar a um já seu grande amigo, Rodolphe Kreutzer (1766-1831), um outro violinista, embora francês.

Em 1889, Liev Tolstói (1828-1910), escritor russo, publicou, em 28 capítulos, uma história curta intitulada «A Sonata Kreutzer», cujo tema principal é a reafirmação dos valores do espírito perante um desregrado fluir das paixões e dos sentidos.

O filme «Immortal Beloved» («A Amada Imortal»), de 1994, que versa mormente a vida amorosa de Ludwig van Beethoven, mostra claramente, no diálogo entre Beethoven (Gary Oldman) e Anton Felix Schindler (Jeroen Krabbé) – em cuja cena está estampado o capítulo 23 dessa obra de Tolstói – que nesta sonata está latente, na mente do compositor de Bona, a ideia musical de um amante tentar alcançar a sua amada, não obstante a chuva, a trovoada e a lama da carruagem impedirem o seu propósito. Mas ao certo não existem fontes históricas fidedignas a comprovar esta simples conjectura literária.

OUTUBRO,16 (1915)

Os afamados bordados da Ilha da Madeira

Dormi muito bem. Levantei-me às nove horas. Almocei bem e lanchei melhor. Ainda durmo um pouco depois do lanche. Levantei-me às quatro horas para o chá. Cheguei ao portão e encontrei umas inglesas “mercando” bordados a umas mulheres cá da ilha. Achei barato e comprei cinco lindas blusas por 5$ para presente às amiguinhas quando voltar à minha terra.

À noite, depois do jantar, nos reunimos na sala de visitas e a enfermeira respondeu-me à família recém-chegada. A senhora fala francês. Entabulamos conversa que não durou muito tempo porque eu mesmo deixei-a esmorecer, pois queria de ler “A Sonata”. Acabei e comecei a leitura do “Cristo e Maomé”. Passei muito bem o dia de hoje e vou dormir satisfeito.

OUTUBRO, 17 (1915)

O famoso Graf Zeppelin

Domingo;dormi ainda muito bem. Depois do almoço, que tomei suculento,(como se diria em Oeiras) recebo a visita do agente consular do Brasil, o Sr. Raul Teives. Conversamos algum tempo sobre as cousas do Brasil; sobre a morte do General Pinheiro Machado, etc. Disse-me que também ele é jornalista do “Diário da Madeira”, e pôs este jornal à minha disposição, convidando-me a visitá- lo logo que chegue o diretor de Lisboa. Aceitei o oferecimento e disse-lhe que mandaria uns versos; convidei-o a jantar comigo um dia e entre muitos protestos de cordialidade de ambas as partes e oferecimentos muito rasgados da parte dele, nos separamos.

Tomo o lanche e leio mais um capítulo do “Cristo e Maomé”, que vou achando ótimo. Durmo um pouco e desço para o chá. Encontro-me com um hóspede dos recém chegados(é filho dos outros dois) que me oferece cigarros e puxa conversa. Ele parece-me não ter muito bom juízo, mas apesar disto, vê-se que é um rapaz educado. Tagarelamos muito sobre o Brasil, sobre a Alemanha e os alemães, sobre a escuridão que reina de noite em Londres por causa dos Zeppelins, etc. Quando me estava já enfastiando a palestra, chegam os pais do meu interlocutor, que tinham ido passear. Eles entendem-se em inglês e eu escafedo-me à francesa.

Janto bem e depois do jantar faço um pequeno passeio à Travessa das Angústias e apesar de ter levado sobretudo e luvas voltei com frio. Temos 16 graus de temperatura.

OUTUBRO,18 (1915)

"As Banhistas", de Pierre-August Renoir (1841-1919)
Passei muito bem esta noite e levantei-me às 9 horas. Tomo o almoço e desço ao jardim. Volto e começo a copiar a “Janua Coeli”, que agora chamei “Ode à Madeira”, para mandar ao “Diário”, conforme prometi ao Sr. Raul Teives (Vice-Cônsul do Brasil). Depois do lanche durmo alguma cousa. À tarde assisto do cais o banho das inglesas. Há hoje muitas banhistas e,uma delas, com ótimas pernas. Parece que, propositadamente,para exibi-las traz calças excessivamente curtas que apertam muito acima dos joelhos. É a única que as traz tão curtas. Volto à casa e entrego, ao criado, um envelope para o Vice-Cônsul, contendo os versos prometidos. Amanhã serão entregues e talvez publicados depois. Janto e recolho-me às nove e meia.

OUTUBRO, 19 (1915)

Na Ilha da Madeira...
Relendo estas notas verifico que, ultimamente, tenho-as escrito sem nenhuma vibração e quase sem nenhum interesse: limito-me a registrar os fatos sem o menor comentário como competia a um homem de espírito. Em parte, a culpa não é minha, mas dos próprios fatos que se têm sucedido desinteressantes e banais. Contudo, vou tentar por um pouco mais de vida nas minhas notas, sempre que haja assunto ou tema para qualquer dissertação. O dia de hoje, por exemplo, não teve nada que merecesse um comentário. Foi um dia em que apenas o animal teria vivido se não fosse a leitura de uma boa parte do “Cristo e Maomé”, que vai me interessando bem e que reputo uma obra de valor. Quanto ao mais bom apetite e boa saúde (relativamente,está claro).

OUTUBRO, 20 (1915)

Casa da Campo no Funchal

Passei bem a noite e bem cedo aborrecemo-me com o criado, porque não
providenciou para que eu tivesse o agrião que resolvi usar diariamente e porque não mandou levar a carta que lhe entreguei, para Dr. Raul Teives, desde o dia 18. Passo bem o dia e, como não tenho mais dinheiro, resolvo ir amanhã buscá-lo na cidade, em casa dos meus correspondentes. Peço ao criado a carta ao Dr. Raul. Levar-la-ei eu mesmo amanhã, quando descer. Esta carta contém, como já disse, os versos que prometi para o “Diário da Madeira”.

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ODE À MADEIRA

Nogueira Tapety


Madeira! Foi assim que eu te sonhei:
Uma linda montanha
Toucada de jardins, magnífica, risonha,
E és como imaginei.
Ergues-te sob um céu sempre claro e brilhante,
Onde o sol que flutua,
Sendo prodigamente fecundante,
Não teve aquela luz torrefacente, crua,
Que faz de minha terra outro inferno de Dante.
O mar, que como um cão meigo te lambe os pés,
É verde, transparente, deslumbrante,
E plácido, como és;
Não possui o furor selvagem tonitruante
Do mar americano
Que troveja e que ruge em regougar insano.
Deste mar, calmo assim, surgiste esplendorosa
Como um grito de pedra, um símbolo titânico
Da tortura sem par e da angústia horrorosa
Da terra sacudida em abalo vulcânico...
E a terra foi artista e caprichosa,
Exprimindo esta dor brutal, violenta
Na arquitetura arquimaravilhosa
Que em ti se representa,
E onde existem bastiões, cúpolas, coruchéus,
Minaretes, torreões de um estilo esquisito,
Que se erguem para os céus
Numa heróica cruzada de granito.
E, a par desta grandeza e desta formosura,
És um prodígio de fecundidade...
Da serra áspera e dura,
Cada anfractuosidade
Canta a canção da vida e da verdura...
Verdura que depois se há de fundir em cores,
Abr indo em profusões orgíacas de flores.
Nerêiade do Atlântico!
Tu seduziste o mar,
E o trazes a teus pés rendido, a se rojar,
Terno, amoroso, humílimo, romântico,
Sonatas e baladas a cantar...
Toda a terra sorriu na alegria mais pura,
Quando o mar descerrando as fauces sem limite
Apresentou-te ao sol, assim como Anfitrite,
No divino esplendor de tua formosura...
Madeira! És a corbelha da natureza,
Foi flora quem te ornou com requintes de artista
Para provar ao mundo a infinita grandeza
Do seu gênio divino de florista.
Toda flor, todo fruto e toda espécie de ave,
Vive ao solo teu, canta nos teus pomares,
Desde os heliantos de ouro aos nenúfares,
Desde o melro irrequieto ao môcho grave.
Essa Ogígia adorável que foi feita
Com carinho excessivo e excessiva beleza,
Para a doce morada de uma eleita,
Não seria, de certo, em nada mais perfeita,
Que esta linda porção de terra portuguesa...
E, apesar de tudo isto, és meiga e generosa,
Possuis uma bondade e doçura sem termo,
E entregas o regaço, carinhosa,
A toda alma infeliz e a todo corpo enfermo...
És a mais doce e altruísta irmã de caridade
Que neste mundo egoísta há de existir:
Nada pedes e dás aos que te vêm pedir:
- Saúde, robustez, felic idade...
Ao vencido, ao enfermo, ao fatigado,
Parece que convidas num sorriso:
“Repousa no meu seio perfumado
- Eu sou o Paraíso –“
Bendita sejas tu, e bendito este ambiente
Suavíssimo que encerra
O ar mais leve e salubre e puro e transparente
Que existe sobre a terra.
Funchal – setembro – 1915

OUTUBRO, 21 (1915)

Catedral do Funchal (foto de época)

Tive muito boa noite. Tomo o almoço e peço um automóvel para a c idade. Desço em casa do médico. Acha-me com melhor presença e depois de me auscultar manda que continue usando o mesmo medicamento que me receitara anteriormente e que não usei. Consulto se posso tomar banho de mar e tenho resposta negativa. Pesa-me e verificamos que estou com 54 quilos, ou seja, três quilos a mais do que quando aqui cheguei. Fico satisfeito, pois o aumento é verdadeiro, visto como tive o cuidado de levar a mesma roupa, os mesmos sapatos, enfim “toillete” absolutamente igual à que levei quando lá me pesei pela primeira vez. Combinamos, eu e o médico, que nos encontraremos todas as quartas-feiras para ser observado. É preciso notar que ele mandou-me, quando lá fui da outra vez, que comprasse um termômetro, para observar a minha temperatura quatro vezes por dia e levar-lhe um quadro com a demonstração delas. Na semana passada, vê-se pelo quadro, que nunca tive temperatura superior a 36,8 graus.

Começo a ter mais confiança no tal médico e resolvo tomar os remédios que ele mandou (tricalcina, benzoato de sódio, nuclerinato de sódio). Do médico vou ao correspondente; recebo dinheiro e faço na rua algumas compras. Chego a casa justamente à hora do lanche. Depois de ter lanchado subo aos meus aposentos e penso no aumento de peso que acuso. Ah, se eu vou me curar! Que bom seria. Durmo alguma cousa e quando acordo é hora do chá (4 horas). Banhando então o rosto, sinto, quando lhe passo a mão, que já não o encontro tão emagrentado. Está tudo muito bem (“all right”). Começo a ler “A Alma da Criança”. Chega a hora do jantar. Janto sob um bem-estar paradisíaco.

OUTUBRO, 22 (1915)

Em Câmara dos Lobos

Não dormi muito bem. Desço às 9 horas. Sento-me à mesa para o almoço e peço o“Diário da Madeira”, quando volto a página surpreende-me uma notícia espalhafatosa e esmagadora da minha estada aqui. Fiquei visivelmente comovido e exaltado. Isto fez-me mal pois, às 3 horas, senti febre e o termômetro confirma-o. tenho 37,4 graus de temperatura, duas horas depois desaparecia esta febrícula e agora (9 da noite), tenho apenas 36,8. Depois do jantar a Mrs. Johnson (é a senhora da família chegada a 15) fere conversação (em francês), respondo-lhe a tudo e depois de confessado sobre a minha posição, os meus títulos, o meu “metier”, informo-lhe que o “Diário da Madeira”, de amanhã ou depois, deve trazer uns versos meus. A senhora é distintíssima, de maneiras cordiais, mostra uma educação aprimorada. Seu marido é mais sóbrio, embora muito cortês e atencioso. Recolho-me às 10.

OUTUBRO, 23 (1915)

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Passei bem a noite apesar de ter tido um sono sempre interrompido. Choveu todo o dia uma chuvinha miúda, pertinaz, impertinente. Fez algum frio (16 graus à sombra) e passei o dia comendo e dormindo. Quando deixava uma destas ocupações era para me entregar à outra. Pleno império do animal sobre o homem.

OUTUBRO, 24 (1951)

Domingo. Dormi mal. Desci às 9 horas. O “Diário da Madeira” traz os meus versos. Depois do almoço, quando saía da sala de jantar, encontrei a Senhora Johnson que me felicitou por isto, dizendo que não os podia ler, porque não sabia o português, contudo acreditava que tivessem esplêndidos. Sempre é muito gentil esta Sra. Johnson. Ainda hoje fez mau tempo pelo que não pude sair nem ao jardim. Foi, enfim, um dia de “spleen”, atenuado apenas pela leiturado “Imortal”, de Daudet, apesar de ser indigna a tradução que estou lendo e de estar eivada de erros de revisão.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

OUTUBRO, 25 (1915)

Construído naquele ano (1915), o Encouraçado "Queen Elizabeth"
sobrviveu à 2ª Guerra. Foi transformado em sucata em 1948

Passei sofrivelmente esta noite. Acordei às 8 horas pelo r ibombar de canhões que salvaram em descargas fragorosas. É um novo cruzador inglês que chega. Salvam-no os fortes da Madeira e um cruzador “Yankee” que está no Porto. Vou ao almoço. Às 11 e meia chega-meo professor de inglês que incumbi o Souza de arranjar, pois estou convencido que na Madeira não se pode viver sem conhecer esta língua. Ademais, será um entretenimento que me ajudará a encher as horas e a ociosidade a que estou condenado. Escrevo um cartão à redação do “Diário da Madeira” pela lisonjeira notícia que deu a meu respeito, e mando comprar uns números do jornal que a traz para mandar ao Brasil. Pelas seis horas tive um pouco de febre (37,5 graus), mas agora já não a tenho, pois a minha temperatura é 36,8.

OUTUBRO, 26 (1915)


Passei bem a noite. Estando anunciada para amanhã a chegada do “Lanfranc”, escrevi algumas cartas para mandar por ele, dirigidas a meu pai, ao Corinto, ao Antônio Veras, e postais aos Campos, à Dona Modestina, à Valmira e ao Mirocles. Continuo a leitura do “Imortal” e nisto cifrou-se o dia.