domingo, 14 de junho de 2009

SETEMBRO,16 (1915)

Carro de Bois utilizado para transporte de passageiros no Funchal
Dormi mal, não só porque o fígado incomodou-me durante toda a noite, como porque fui acometido de uma insônia terrível. Às oito horas desço para o almoço. Na ponte monumental que fica muito perto daqui (talvez uns 80 a 100 metros) há uma aglomeração. Foi um Sr. Diogo Sorsefield que se suicidou, atirando-se abaixo. A ponte tem 31 metros de altura, de modo que quando o homem acabou de cair era cadáver. O Sr. Diogo era tesoureiro da Junta Geral e dizem que há dias apresentava sintomas de alucinação mental. Tomo o meu almoço e faço, pela primeira vez, um grande passeio aos magníficos jardins deste Reid’s Pálace Hotel, que cada vez me parece mais suntuoso. Fiquei pasmo e admirado como um estabelecimento particular sustenta um jornal como este, monstruoso, maravilhoso, onde vejo plantas, flores e árvores frutíferas de todos os climas. O hotel propriamente (é preciso ter em vista que estou hospedado na Vila Vitória, um simples anexo, uma simples dependência do Reid’s Pálace, o qual só se abre para o “saison”, que vai de novembro a junho – tempo em que há veranistas e turistas de toda Europa) é um palácio esplêndido com elevadores elétricos e todos os confortos que a civilização tem criado e comporta 250 hóspedes com os anexos. Fica eminente à rocha denominada “Salto do Cavalo”, que tem 150 pés de altura, e ao oeste do jardim, que é comum também à Vila Vitória. Imagine-se sobre estes 150 pés um palácio de seis andares, com um ótimo e amplo terraço no segundo andar, donde se domina o Atlântico e se aprecia, portanto, todo o movimento do porto de Funchal. Depois de ter visto o hotel propriamente, volto pelo jardim vendo detalhadamente tudo. Pergunto a um jardineiro que trabalha o nome de uma planta que havia num canteiro com uma variedade excepcional na mesma espécie. Pois não conhece? É a malva.

Pois bem. Existe aqui malva com flores em todas as cores: há as vermelhas, absurdamente vermelhas, há brancas, levemente rosadas, amarelas, enfim, uma variedade que surpreende. Há parreiras constituindo caramanchões de uma extensão fantástica; rosas, trepadeiras de muitas espécies e flores bizarras e estranhas como a estreleta, a tebaíba (rainha das flores), uma linda e grande flor branca, as lílias. Aqui conheço a verdadeira açucena, o cáctus, a magnólia legítima etc. No pomar encontro desde a bananeira até a cerejeira. Tamareiras há em todo o jardim cheias de cachos grandes admiravelmente; vejo não sei quantas espécies de palmeiras; pessegueiros, ameixeiras, macieiras e até mangueiras que, por sinal, estão carregadas de frutos e não tem mais de três metros de altura as que puderam crescer mais. Acho-as interessantíssimas comparadas com as do Brasil.

Desço ao mar pela escada do cais do hotel; examino as cabines de banho (salgado) e daí aprecio a altura da rocha em cima da qual edificaram o Reid’s: é simplesmente dantesco este conjunto e por mais que eu escreva não traduzo, não exprimo. Basta dizer que para chegar ao mar (à praia de banho ou cais do hotel) tive que descer 243 degraus. Desta rocha de 150 pés de altura, disse-me um criado, foi que se precipitou o Senhor Rebouças, um brasileiro que se exilou quando de lá foi deportado o Imperador (isto que para mim é um fato ignorado, confesso-o, fica registrado aqui por conta do criado). Quase a uma da tarde volto para a Vila Vitória, fatigado de ver tanta cousa nova para mim e tudo isto sem ter saído do Reid’s Pálace Hotel.

Tomo o lanche à 1 hora; desço novamente ao jardim e à sombra das tamareiras que formam um pequeno e delicioso bosque começo a compor os primeiros versos da Janua Coeli.

Às quatro horas volto para o chá. É a única refeição que temos em sociedade, isto é, de que nos servimos em uma só mesa. Na sala de visitas e na mesa de centro, que é bem ampla, está uma enorme bandeja com uma alvíssima toalha e um rico serviço de prata, cada peça do qual é de um tamanho exorbitante. Há um enorme bule de chá, um açucareiro, uma leiteira, um bule de água quente, uma terrina (também de prata), com bolos ingleses e duas bandejas cheias de fatias de duas espécies. Ao redor da mesa estão dispostas algumas cadeiras. Poucos hóspedes servem-se destas. A maior ia enche a chávena e vai dispersando à vontade: um toma o sofá, outro uma cadeira de espaldar, este senta-se à cadeira do piano, aquele à da secretaria, aquele outro uma“chaise-longue” e todos, numa prosa animada, tomam chá. Eu observo e não digo, nem percebo nada. Todos são ingleses e falam a sua língua. Há, porém, uma inglesita magrela e feia que a tudo o que lhe falam sibila um “yes” que já me vai irr itando. Parece que esta criatura só sabe de inglês esta palavra e, se houvesse com quem comunicar, propunha para ele o apelido de “Miss
Yes”. Deixo a sala e começo a leitura da “Parme Chautreuse”(sic)*, de Stendahl. Às sete horas, quando tocou o primeiro aviso de jantar, tinha devorado dois capítulos. Subi para fazer a“toillete” de jantar (todos os hóspedes aqui só dançam de “smoking”). Jantei pouco, porque o fígado continua mal. Próximos a mim numa mesa redonda sentam-se três criaturas que começo a observar com interesse: um senhor que aparenta ter cerca de cinqüenta anos, uma senhora mais ou menos da mesma idade e uma rapariga que, no máximo terá 25 anos. As duas senhoras se entendem em espanhol. O homem só fala espanhol quando se dirige à rapar iga, que é sua filha, porque esta não sabe inglês; para todas as outras pessoas nada diz, senão neste idioma.

Depois do jantar dirige-se a mim um hóspede velhusco, de cara jovial, e pergunta em inglês qualquer cousa que não percebo. “I no espeech inglish”, digo-lhe eu. Fala-me então francês e pergunta se sou português. Digo-lhe a minha nacionalidade e entabulamos conversa sobre cousas do Brasil. Ele fala o francês perfeitamente mal, de modo que sinto-me à vontade assassinando a língua alheia. Apesar, nos entendemos bem. Depois de ter ido ele embora, pergunto ao João (nome do primeiro criado) e sou informado de que é um of icial reformado do exército inglês, que viaja para esquecer a dor que lhe deixou a perda de dois filhos mortos em combate com os alemães. Esteve quase a ficar maluco e demora poucos dias na Madeira, devendo embarcar no primeiro vapor para a Colônia do Cabo. Lembro-me de que ainda não vi oSouza para desabafar a propósito da viagem perdida que ele me fez dar ao Monte. Pergunto aos criados e dizem que ele hoje não apareceu. Subo para os meus aposentos e vou dormir depois de ter escrito estas notas, sentindo o fígado sempre pesado e dolorido.

* O poeta quis referir-se ao romance "
La Chartreuse de Parma"



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