domingo, 14 de junho de 2009

OUTUBRO, 20 (1915)

Casa da Campo no Funchal

Passei bem a noite e bem cedo aborrecemo-me com o criado, porque não
providenciou para que eu tivesse o agrião que resolvi usar diariamente e porque não mandou levar a carta que lhe entreguei, para Dr. Raul Teives, desde o dia 18. Passo bem o dia e, como não tenho mais dinheiro, resolvo ir amanhã buscá-lo na cidade, em casa dos meus correspondentes. Peço ao criado a carta ao Dr. Raul. Levar-la-ei eu mesmo amanhã, quando descer. Esta carta contém, como já disse, os versos que prometi para o “Diário da Madeira”.

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ODE À MADEIRA

Nogueira Tapety


Madeira! Foi assim que eu te sonhei:
Uma linda montanha
Toucada de jardins, magnífica, risonha,
E és como imaginei.
Ergues-te sob um céu sempre claro e brilhante,
Onde o sol que flutua,
Sendo prodigamente fecundante,
Não teve aquela luz torrefacente, crua,
Que faz de minha terra outro inferno de Dante.
O mar, que como um cão meigo te lambe os pés,
É verde, transparente, deslumbrante,
E plácido, como és;
Não possui o furor selvagem tonitruante
Do mar americano
Que troveja e que ruge em regougar insano.
Deste mar, calmo assim, surgiste esplendorosa
Como um grito de pedra, um símbolo titânico
Da tortura sem par e da angústia horrorosa
Da terra sacudida em abalo vulcânico...
E a terra foi artista e caprichosa,
Exprimindo esta dor brutal, violenta
Na arquitetura arquimaravilhosa
Que em ti se representa,
E onde existem bastiões, cúpolas, coruchéus,
Minaretes, torreões de um estilo esquisito,
Que se erguem para os céus
Numa heróica cruzada de granito.
E, a par desta grandeza e desta formosura,
És um prodígio de fecundidade...
Da serra áspera e dura,
Cada anfractuosidade
Canta a canção da vida e da verdura...
Verdura que depois se há de fundir em cores,
Abr indo em profusões orgíacas de flores.
Nerêiade do Atlântico!
Tu seduziste o mar,
E o trazes a teus pés rendido, a se rojar,
Terno, amoroso, humílimo, romântico,
Sonatas e baladas a cantar...
Toda a terra sorriu na alegria mais pura,
Quando o mar descerrando as fauces sem limite
Apresentou-te ao sol, assim como Anfitrite,
No divino esplendor de tua formosura...
Madeira! És a corbelha da natureza,
Foi flora quem te ornou com requintes de artista
Para provar ao mundo a infinita grandeza
Do seu gênio divino de florista.
Toda flor, todo fruto e toda espécie de ave,
Vive ao solo teu, canta nos teus pomares,
Desde os heliantos de ouro aos nenúfares,
Desde o melro irrequieto ao môcho grave.
Essa Ogígia adorável que foi feita
Com carinho excessivo e excessiva beleza,
Para a doce morada de uma eleita,
Não seria, de certo, em nada mais perfeita,
Que esta linda porção de terra portuguesa...
E, apesar de tudo isto, és meiga e generosa,
Possuis uma bondade e doçura sem termo,
E entregas o regaço, carinhosa,
A toda alma infeliz e a todo corpo enfermo...
És a mais doce e altruísta irmã de caridade
Que neste mundo egoísta há de existir:
Nada pedes e dás aos que te vêm pedir:
- Saúde, robustez, felic idade...
Ao vencido, ao enfermo, ao fatigado,
Parece que convidas num sorriso:
“Repousa no meu seio perfumado
- Eu sou o Paraíso –“
Bendita sejas tu, e bendito este ambiente
Suavíssimo que encerra
O ar mais leve e salubre e puro e transparente
Que existe sobre a terra.
Funchal – setembro – 1915

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