domingo, 14 de junho de 2009

SETEMBRO, 15 (1915)

Hotel Reid Palace na Ilha da Madeira

Cheguei ontem pelas 9 horas da noite. Não pude, portanto, gozar do “Araguaia” o panorama da cidade à luz do sol, como esperava. Mesmo, porém, à luz elétrica, o espetáculo é magnífico pela quantidade de luzes e pela extensão em que elas se espalham como num anfiteatro, galgando em alas uma elevação que na bruma da noite pude distinguir, concluí logo que Funchal não era a pequena cidade que imaginei... Hoje verifico, num guia da cidade que comprei, editado em 1910, que a sua população já neste tempo era calculada em 3.000 habitantes. Talvez fosse um efeito da predisposição que eu vinha para achar Madeira muito linda, mas a verdade é que, mesmo à noite, fiquei encantado com a iluminação da cidade que, apesar de feérica, dá-lhe um aspecto bizarro pela natural topografia do terreno, cheio de anfractuosidades. Foi esta a impressão que em mim produziu o primeiro golpe de vista com que olhandodo “Araguaia” e na bruma da noite eu vi a ilha da Madeira.
Uma observação que fiz, mesmo a bordo, foi a do sotaque indigno com que se fala o português. Todos falam cantando e cantando sensivelmente. No Brasil consigna-se este fato entre alguns habitantes do norte; aqui, porém, a coisa é muitíssimo mais exagerada. Ri, intimamente, desta primeira diferença entre o brasileiro e o ilhéu português.
A bordo apareceu um Senhor Souza, empregado do Reid’s Hotel, onde o AntônioVeras aconselhou que me hospedasse. Com este senhor desembarquei numa lancha do hotel, depois de haver entregue a bagagem ao catraieiro indicado por ele. Chegados ao cais, informa o Sousa que o hotel é um pouco distante e seria melhor ir em automóvel.Veio o auto e quando chegamos ao Reid’s fiquei surpreendido: custava 500 réis o transporte que eu no Brasil talvez só fizesse por 5.000 réis. Aí apareceu-me uma senhora que indicou ao Souza o quarto nº 1. E foi neste quarto nº 1 da Vila Vitória (anexo do Reid’s Pálace Hotel) que dormi a primeira noite na Madeira.
Acordei, seriam 8 horas. Abro a janela e um jorro de luz invade o quarto. O panorama que descortino é soberbo: à direita o mar muito calmo e muito verde, à esquerda o monte coroado de névoa e coberto de verdura, para frente quintas e chalés interessantes e pitorescos e lá mais abaixo a cidade com seus telheiros avermelhados de concreto. Faço a “toillete” e desço. Peço o jornal e dão-me o “Diário da Madeira”. É um jornal grande, mas que me parece mal feito. Na sala de jantar um criado solenemente encasacado indica-me uma pequena mesa. Sento-me e sou servido de peixe, ovos, leite, chá, pão e frutas. A esta primeira refeição chama-se aqui almoço. Vejo num anúncio contido num artístico folheto que o Souza me deu, ser a seguinte a ordem das refeições neste luxuoso hotel, onde não me estou sentindo muito bem, por me achar completamente deslocado e fora dos meus hábitos: às 9 horas almoço; à 1 lanche; às 4 chá, às 7½ jantar. Além do mais verifico logo que tudo aqui é inglês e à inglesa desde o dono do hotel aos hóspedes; desde a ordem e horário das refeições aos pratos que vêm à mesa. Depois de ter eu almoçado chega o Souza (é um empregado que não assiste no hotel: vai a bordo, recebe os passageiros, acomoda-se e vai-se, voltando apenas quando é preciso ou quando traz novos hóspedes vindos em vapores que chegam). Saímos juntos e, como eu lhe havia dito ontem à noite que me destinava ao hotel Reid’s, porém o do monte (este Senhor Reid tem aqui nada menos de três hotéis: Reid’s Pálace Hotel, Reid’s Carmo Hotel e Reid’s Mount Park Hotel; é sócio de um banco e tem casa de modas e bordados... o diabo enfim), resolvemos ir à alfândega despachar a bagagem de lá para o Reid’s Mount Park Hotel, e eu subo, depois de ter lanchado no trem das três horas. Na alfândega fomos despachados logo e quando o Souza entregava bagagem a um catraieiro para levá- la ao Monte, aproxima-se um guarda e diz que eu tinha de pagar “capatazia” ou cousa que o valha. Tomei um choque. Supus que me fossem esfolar e pergunto ao homem quando é: “duzentos e cinqüenta réis”, responde-me ele com uma arrogância feroz. “Tableau”!
Sempre acompanhado do Souza volto ao hotel. Tomo o lanche, que acho esplêndido e voltamos os dois à cidade onde, depois de passar telegramas para o Piauí, dizendo ter chegado com boa viagem, e de ter comprado livros (6 volumes por 2.400 e ótimos livros) tomo o comboio para o Monte. À proporção que o comboio subia também a minha admiração pela Madeira. Que beleza de paisagem! Chegados à estação não encontrei o Sr. Fernando, como esperava, pois o Souza me disse ter prevenido pelo telefone a este Sr. Fernando (diretor ou gerente de Reid’s Park Hotel) que me fosse receber à estação no que ele concordou. Falo a uns carregadores que levem a mim e a bagagem (que foi no mesmo comboio) para o tal hotel, e lá íamos quando encontramos o Sr. Fernando que me vinha prevenir não existirem cômodos vagos. Que sentia muito, mas que isto mesmo dissera ao Souza e fora ele Souza então quem não ouviu bem. Desapontado, furioso, desci no mesmo comboio, e se nesta ocasião encontro o imbecil que me fez dar tamanha viagem perdida, esganava-o, sem dúvida. Na volta sentou-se ao meu lado uma linda criatura que pelo tipo me pareceu inglesa. Quando calçava as luvas, a sombrinha, que ela encostara aos joelhos, caiu sobre os mes pés, e, como a tinha juntado e entregado cortesmente sua formosa dona, esta pagou-me com um lindo sorriso a amabilidade que lhe fiz. Durante a viagem olhou-me sempre com interesse, do que concluí que ou essa criatura estava admirada do meu tipo de mulato, que não é muito comum aqui, ou é alguma “demi-mondaine” que “faz olho” por dever de ofício. Chegado à estação o guarda que despachara minha bagagem para o monte perguntou porque havia voltado. Expliquei- lhe tudo e explodi contra o Souza e contra as coisas de Portugal. O homenzinho mostrou-se sentido que eu tivesse me incomodado sem proveito. Ofereceu-me cadeira, prontificou-se a arranjar carro para mim e para a bagagem; enfim foi extremamente amável. Perguntou se eu voltava para o Reid’s Pálace, respondi que sim. Foi ao telefone pediu um carro que dentro de dez minutos chegou à gare. Por tudo isso gratifiquei-o com 300 réis. Os circunstantes, que nada tinham perdido a minha conversação ficaram estupefatos e eu compreendi, pelos olhares admirativos que me lançaram, que havia feito uma extravagância. Às 5 horas dava eu entrada no Reid’s Pálace Hotel pela segunda vez em menos de 24 horas. Procurei o Souza, já não estava. Não jantei bem e vou para a cama sentindo o fígado bem pesado.

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